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SAÚDE


                                       NA FRONTEIRA ENTRE

                                       A CIÊNCIA E A TRADIÇÃO
               M                       édico argumenta que o futuro da saúde passa pela com-



                                       plementaridade — e não pela rivalidade — entre os co-
                                       nhecimentos convencionais e alternativos.

                                       Num país onde as terapias alternativas ganham cada vez
                                       mais adeptos, a Revista SIM foi ouvir a opinião do médico
                                       Miguel Ayres de Campos. O especialista argumenta que o
                                       caminho não é a rivalidade, mas sim a regulação e a com-
                                       plementaridade. E talvez o segredo esteja no tempo que os
                                       terapeutas conseguem dedicar à escuta dos pacientes.

                                       O recurso a terapias alternativas tem crescido de forma
                                       consistente em Portugal e noutros países, sobretudo em
                                       áreas como dor crónica, ansiedade e doenças oncológicas.
                                       Muitos pacientes procuram complementar os tratamentos
                                       convencionais com práticas como acupuntura, homeopa-
                                       tia ou reiki. Mas como articular ciência e tradição de forma
                                       segura?

                                       O Problema da “Casa sem Lei”
                                       Para Ayres de Campos, a resposta começa pela definição
                                       de fronteiras. “Se aceitarmos que a medicina convencional
                                       é aquela cujas fontes de conhecimento se conformam com
                                       os  princípios  do  método  científico,  e  a  alternativa,  aque-
                                       la cujas fontes são oriundas de entendimentos antigos de
                                       base predominantemente empírica, acordamos num mo-
                                       delo de trabalho que, longe de ser estanque, nos permite
                                       encetar uma abordagem minimamente consistente para   à situação de doença.” Esta abordagem empática é, para o
                                       que possamos debater o assunto.”           médico, uma “ferramenta terapêutica de enorme utilidade
                                                                                  e eficácia”, sobretudo em casos de doenças cuja compo-
                                       Para o médico, é essencial compreender o que significa o   nente psicossomática é preponderante.
                                       método científico: “um processo que envolve observação,
                                       formulação de hipóteses, experimentação e análise que   O Mérito Está no Resultado
                                       permita validar e reproduzir o conhecimento ao longo do   Para o especialista, o valor de qualquer terapia mede-se
                                       tempo. Já as terapias alternativas não exigem esta consis-  pelos resultados práticos no bem-estar do paciente. “Os
                                       tência, atribuindo muitas vezes as variações dos resultados   médicos querem-se terapeutas e não cientistas, pelo que o
               Eva Pereira             a fenómenos de natureza metafísica.”       mérito de uma ou de outra modalidade deverá ser avalia-
                                                                                  do em função da sua capacidade de providenciar soluções
                                       O especialista não desvaloriza o mérito de qualquer modali-  eficazes de saúde e bem-estar, independentemente da
                                       dade, desde que a sua idoneidade seja assegurada. O alerta,   proveniência das práticas, desde que a sua idoneidade seja
                                       porém, surge precisamente na área da regulação. “A prática   assegurada.”
                                       das medicinas alternativas nem sempre goza de estatuto
                                       regulatório, não pela incompetência de muitos que a exer-  O Futuro é da Complementaridade
                                       cem, mas pela existência de outros, e muitos, praticantes   Ayres de Campos conclui que o futuro não está na exclu-
                                       cuja formação é inadequada ou nula.”       são, mas na articulação entre os dois modelos. “Tendo em
                                                                                  conta o que se constatou e assumindo as dúvidas e incer-
                                       E o cenário agrava-se, acrescenta: “Constam um sem-nú-  tezas inerentes à apreciação de um assunto tão complexo
                                       mero de alegados terapeutas cujas intenções são claramen-  e multifacetado, parece-nos que as mais-valias de ambas
                                       te fraudulentas, visando a ascendência que conseguem   as perspetivas sugerem uma complementaridade que se
                                       ganhar sobre os seus pacientes e respetivos benefícios   antevê como vantajosa na abordagem terapêutica de um
                                       em termos económicos e existenciais. Não existe, porém,   número significativo de situações de doença.”
                                       nenhuma instituição que os regulamente ou lhes confira e
                                       confirme o crédito.”                       E deixa no ar uma reflexão que não é apenas clínica, mas
                                                                                  também social: se a medicina convencional tivesse tempo
                                       O Poder (Subestimado) da Escuta            para escutar os pacientes com a mesma atenção que muitos
                                       Apesar dos riscos, Ayres de Campos defende que seria “ob-  terapeutas alternativos, será que continuaria a haver tanta
                                       tuso e leviano descartá-las como inúteis”. Uma das explica-  procura fora do sistema?
                                       ções para o seu sucesso, observa, pode estar não tanto no
                                       que é feito, mas em como é feito.          Talvez a resposta também resida noutro fator pouco deba-
                                                                                  tido: o consumismo médico em excesso, que muitas vezes
                                       “A disponibilidade em termos de tempo de escuta ativa do   surge  não por  verdadeira  necessidade  clínica,  mas  como
                                       paciente, junto com a capacidade de fornecer respostas   consequência direta da solidão que atravessa a vida de
                                       categóricas, simplificadas e inteligíveis, possa contribuir   grande parte da população.
                                       em termos de redução significativa do mal-estar inerente



               #SIMatuaREVISTA                                 SETEMBRO · 2025                                           83
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