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REPORTAGEM                                                                                                                              REPORTAGEM


                                                    tel para vender aos pretos. De resto, Angola   Do mar chegava pelas 07h00. Pegava na
                                                    era um paraíso. Já havia Coca-Cola. As mu-  bicicleta para cumprir o horário de carteiro
                                                    lheres andavam bem vestidas. Viva-se melhor   (08h30-15h00). De seguida, ia para o cam-
                                                    em Angola do que se vive aqui agora. Tinha   po plantar cebolas, batatas, cenouras. Fiz
                                                    café, bananas, laranjas. Quando estava de fé-  tudo. Sei fazer tudo. No campo, sempre fiz
               Fui ao Gerês que tem                 rias, corri África. Não faltava nada. Os pretos   muitas experiências”.
               leitugas comestíveis. Trouxe         não trabalhavam. África tinha tudo, eles é que   ALFACE DE OURO
                                                    são malandros. Aquela terra dá tudo. Sem fa-
               e plantei. Deixei fazer              zer nada. Bastava lançar para a terra”. A oferta   Homem de mil saberes, Carlos Moreira relata
                                                    era tão gorda que serviu para tirar a carta de
               semente e semeei. Passado            condução profissional: “Tinha um pipo de 100   como fez um bom ‘pé-de-meia’: “nunca con-
                                                                                         tei isto, mas vou-lhe contar. Fiz uma expe-
               pouco tempo, deu uma                 litros de vinho. No garrafão, metia-lhe água.   riência que me deu um bocado de dinheiro.
                                                    Vendia-o a cinco escudos. Com esse dinheiro
               ‘alface de sonho’, nunca             tirei a carta. Sempre me desenrasquei. Estive   Fui ao Gerês que tem leitugas comestíveis.
                                                                                         Trouxe e plantei. Deixei fazer semente e se-
               vista por estas bandas. Tudo         25 meses em Angola. Regressei em fevereiro   meei. Passado pouco tempo, deu uma ‘alfa-
                                                    de 1971. Tenho saudades. Nunca mais voltei.
               queria comprar e eu vendia.          Estou em paz, até podia ir lá, mas agora não.   ce de sonho’, nunca vista por estas bandas.
                                                                                         Tudo queria comprar e eu vendia. Uma vez,
               Uma vez, veio um francês             Angola ficou no meu coração”.        veio um francês perguntar onde arranjei a
               perguntar onde arranjei a            CARTEIRO DO MAR                      semente, mas disse-lhe que era segredo.
                                                                                         Disse que me dava três mil contos. Assim
               semente, mas disse-lhe que           No  regresso  a  Portugal, o encontro  com  a   aconteceu. Recebi o dinheiro e nunca mais
                                                    miséria: “quando casei há 53 anos, nem fri-
               era segredo. Disse que me            gorífico tinha. Os mais velhos, diziam-me   fiz a semente. Isto foi em 1980”.
               dava três mil contos. Assim          que era um bom pescador, mas o meu futu-  CANCROS DERROTADOS
                                                    ro, a reforma, era andar de ‘saco às costas’.
               aconteceu. Recebi o dinheiro         E diziam para arranjar emprego. Então fui   Em 1998, a mulher da sua vida contrai um
               e nunca mais fiz a semente.          para carteiro. Fazia as duas coisas. Foi o meu   cancro na mama. Um ano depois, retira os
                                                                                         ovários e o útero. Vinte anos volvidos, novo
                                                    irmão – também carteiro – que me arranjou
               Isto foi em 1980”.                   o emprego (1.400 escudos/mês). Comecei   cancro na mama. Tempo duro enfrentado de
                                                    antes da tropa e garanti o mesmo trabalho   frente: “ficou sem cabelo, mas eu não que-
                                                    quando regressei. Conciliava as duas coisas”.  ria vê-la assim e comprei-lhe uma peruca.
               SAUDADES DE ANGOLA                   O duplo ofício exigiu-lhe muita resiliência:   Agora está bem. Não nos falta nada”. Porém,
                                                                                         esta tormenta obrigou-o a deixar o mar: “sem
                                                    “Ia entre as duas e as três da manhã para o
               Pelo meio desta vida de pescador, a chamada   mar. Trabalhava 20 horas por dia. Mas feliz-  o apoio dela, não fazia sentido continuar. Se
               para prestar serviço militar em Angola, antiga   mente, hoje tenho duas casas e mais uma, a   tenho saudades? Tenho, porque tinha o ví-
               colónia portuguesa: “gostei de lá estar. Feliz-  do meu filho. Depois de vir do mar, a minha   cio do mar. No entanto, vou ao mar todos os
               mente nunca passei fome. Vi mortos, nunca   mulher vendia o peixe. Depois andava 40   dias, seja Verão seja Inverno. Gosto de ir ao
               matei, nem vi matar. Fui cozinheiro. O avião   Km de bicicleta. O giro era feito de motori-  mar. Tenho respeito, mas também o conhe-
               levava peixe de 15 em 15 dias. Metade era rou-  zada e eles pagavam a gasolina, mas para   ço. Nado até ao pescoço e volto para terra.
               bado pelos mestres antes de chegar ao quar-  ganhar mais, ia de bicicleta”.   Tenho 78 anos e não me dói nada”.



































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