Page 88 - SIM 310
P. 88
REPORTAGEM REPORTAGEM
tel para vender aos pretos. De resto, Angola Do mar chegava pelas 07h00. Pegava na
era um paraíso. Já havia Coca-Cola. As mu- bicicleta para cumprir o horário de carteiro
lheres andavam bem vestidas. Viva-se melhor (08h30-15h00). De seguida, ia para o cam-
em Angola do que se vive aqui agora. Tinha po plantar cebolas, batatas, cenouras. Fiz
café, bananas, laranjas. Quando estava de fé- tudo. Sei fazer tudo. No campo, sempre fiz
Fui ao Gerês que tem rias, corri África. Não faltava nada. Os pretos muitas experiências”.
leitugas comestíveis. Trouxe não trabalhavam. África tinha tudo, eles é que ALFACE DE OURO
são malandros. Aquela terra dá tudo. Sem fa-
e plantei. Deixei fazer zer nada. Bastava lançar para a terra”. A oferta Homem de mil saberes, Carlos Moreira relata
era tão gorda que serviu para tirar a carta de
semente e semeei. Passado condução profissional: “Tinha um pipo de 100 como fez um bom ‘pé-de-meia’: “nunca con-
tei isto, mas vou-lhe contar. Fiz uma expe-
pouco tempo, deu uma litros de vinho. No garrafão, metia-lhe água. riência que me deu um bocado de dinheiro.
Vendia-o a cinco escudos. Com esse dinheiro
‘alface de sonho’, nunca tirei a carta. Sempre me desenrasquei. Estive Fui ao Gerês que tem leitugas comestíveis.
Trouxe e plantei. Deixei fazer semente e se-
vista por estas bandas. Tudo 25 meses em Angola. Regressei em fevereiro meei. Passado pouco tempo, deu uma ‘alfa-
de 1971. Tenho saudades. Nunca mais voltei.
queria comprar e eu vendia. Estou em paz, até podia ir lá, mas agora não. ce de sonho’, nunca vista por estas bandas.
Tudo queria comprar e eu vendia. Uma vez,
Uma vez, veio um francês Angola ficou no meu coração”. veio um francês perguntar onde arranjei a
perguntar onde arranjei a CARTEIRO DO MAR semente, mas disse-lhe que era segredo.
Disse que me dava três mil contos. Assim
semente, mas disse-lhe que No regresso a Portugal, o encontro com a aconteceu. Recebi o dinheiro e nunca mais
miséria: “quando casei há 53 anos, nem fri-
era segredo. Disse que me gorífico tinha. Os mais velhos, diziam-me fiz a semente. Isto foi em 1980”.
dava três mil contos. Assim que era um bom pescador, mas o meu futu- CANCROS DERROTADOS
ro, a reforma, era andar de ‘saco às costas’.
aconteceu. Recebi o dinheiro E diziam para arranjar emprego. Então fui Em 1998, a mulher da sua vida contrai um
e nunca mais fiz a semente. para carteiro. Fazia as duas coisas. Foi o meu cancro na mama. Um ano depois, retira os
ovários e o útero. Vinte anos volvidos, novo
irmão – também carteiro – que me arranjou
Isto foi em 1980”. o emprego (1.400 escudos/mês). Comecei cancro na mama. Tempo duro enfrentado de
antes da tropa e garanti o mesmo trabalho frente: “ficou sem cabelo, mas eu não que-
quando regressei. Conciliava as duas coisas”. ria vê-la assim e comprei-lhe uma peruca.
SAUDADES DE ANGOLA O duplo ofício exigiu-lhe muita resiliência: Agora está bem. Não nos falta nada”. Porém,
esta tormenta obrigou-o a deixar o mar: “sem
“Ia entre as duas e as três da manhã para o
Pelo meio desta vida de pescador, a chamada mar. Trabalhava 20 horas por dia. Mas feliz- o apoio dela, não fazia sentido continuar. Se
para prestar serviço militar em Angola, antiga mente, hoje tenho duas casas e mais uma, a tenho saudades? Tenho, porque tinha o ví-
colónia portuguesa: “gostei de lá estar. Feliz- do meu filho. Depois de vir do mar, a minha cio do mar. No entanto, vou ao mar todos os
mente nunca passei fome. Vi mortos, nunca mulher vendia o peixe. Depois andava 40 dias, seja Verão seja Inverno. Gosto de ir ao
matei, nem vi matar. Fui cozinheiro. O avião Km de bicicleta. O giro era feito de motori- mar. Tenho respeito, mas também o conhe-
levava peixe de 15 em 15 dias. Metade era rou- zada e eles pagavam a gasolina, mas para ço. Nado até ao pescoço e volto para terra.
bado pelos mestres antes de chegar ao quar- ganhar mais, ia de bicicleta”. Tenho 78 anos e não me dói nada”.
88 SETEMBRO · 2025 #SIMatuaREVISTA

