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REPORTAGEM
AVÓ Os passos no hospital ardiam. Uma febre que estalou
Já foi aqui abordada a passagem pelo jornal Comércio do Porto. Uma quando foi conduzida para os cuidados intensivos: “acho
despedida que provocou “horrores”. Foi “a primeira perda embora, na al- que só foi aí que me caiu a ficha. Cuidados intensivos?
tura, não a tomasse como tal”. Todavia, a palavra ‘perder’ ganha dimensão, Mas porquê? Caiu-me tudo. Fui para um buraco muito
também por essa altura, quando tombou o primeiro pilar da infância: “foi fundo. Eu sentia-me, tipo, a cair.
um ano complicado…morreu a minha avó materna. Eu estava a viver uma Quando nós acordamos, estávamos a cair no vazio.
fase muito eufórica da vida… (silêncio)”.
Eu nesse momento entrei em anestesia”.
ASAS À ESCRITA
“Tinha de trabalhar, não é? Os meus pais continuavam a dar-me dinhei- Acordei com o telefone a tocar. Era do hospital onde foi comunicado
ro e não podia ser. Como não conseguia estar parada, inscrevi-me logo na que o meu pai não tinha sido operado e que queriam falar connosco. En-
escola profissional para tirar o curso de formadores. Pouco depois aparece
o Correio do Minho. Foi tudo muito rápido. Sem conhecer ninguém, nem tretanto, o meu irmão já lá estava porque tinha morrido a sogra. Eu de-
mesmo o jornal, e a cobrir a região do Minho. Foi desafiante”. Uma casa cido ficar em casa com a minha mãe. Chegam mais pessoas a casa. Pelo
onde permaneceu durante 21 anos e onde foi feliz na esmagadora maio- meio, há uns telefonemas entre familiares e eu começo a sentir que algo
ria dos dias: “posso dizer que fui muito feliz. Associo este jornal à felicidade não está bem, mas longe de saber que o meu pai já estava em coma”.
com as pessoas. Tínhamos um grupo extraordinário, talvez porque éramos Os passos na unidade hospitalar ardiam. Uma febre que crepitou
todos da mesma idade. Estávamos todos com a mesma vontade, ainda com quando foi conduzida para os cuidados intensivos: “só foi aí que me caiu
a mesma magia, com o acreditar que íamos mudar este mundo. Consegui a ficha. Cuidados intensivos? Mas porquê? Caiu-me tudo. Fui para um
sentir isto pelo menos durante 10 anos. Pude escrever e lançar notícias ex- buraco muito fundo. Eu sentia-me, tipo, a cair. Nesse momento entrei
traordinárias. Só que…o peso começou a fazer-se sentir”. em anestesia. Aliás, a palavra anestesia, durante muito tempo, passou a
GOLPES ser proibida entre nós porque nem sequer conseguíamos ouvir a pala-
vra. A nossa primeira reação ao choque é física. Sempre”.
Com a entrada nos 30, Patrícia começa a ser apoderada por outros olha-
res. A restruturação da empresa diminuiu a magia. A carga nos ombros es- Seguiram-se meses até ao último suspiro. Uma morte anunciada que
tava a ser cada vez mais forte até o corpo quebrar. A paralisação do braço ninguém merece sentir. Um alfinete a picar a todo o instante. Um sobre-
foi o primeiro sinal. O andar a mil, a fraca alimentação, o não querer ser bri- viver alienado “pela pessoa que mais amamos no mundo”. O choque é
lho de palco, tudo somado originou um rombo emocional: “não parava em cruel: “a primeira vez que o vi em coma estava todo entubado. De fral-
casa. Doía-me tudo. Andei a fazer terapias alternativas durante dois anos das. Acho que estive 10 segundos…saí porta fora e encostei-me à pare-
intensivamente para voltar a recuperar o movimento do braço. A seguir de. Escorreguei e deixei-me ficar lá. Eu não consegui… (silêncio)”.
aparece-me o hipotireoidismo, doença autoimune. Não parava de correr.
Tinha amigos que me deixaram de convidar para os aniversários porque Continua
nem sequer conseguia ir ao jantar. Saía do jornal sempre tarde e a más ho-
ras. A maior parte dos dias não jantava sequer”.
Na tentativa de minorar as dores, decidiu cortar umbilicalmente com os
escuteiros da terra. Sentiu-se amputada. O tempo iria ser mais tempo. Um
braço de estrada que passou a ser maior nos dias de folga, uma espécie de
luzes pingadas na árvore de Natal.
RESISTÊNCIA
Não obstante, o verniz demorou pouco a estalar. O soalho estava gasto.
Um romper a toda a hora. Sem bolo nem champanhe. Os olhos mais cra-
vados. O olhar com menos brilho. O rastilho explodiu pela falta de solida-
riedade de um episódio a somar a outros. A decisão de querer sair do jornal
foi tomada com as unhas espetadas na pele: “não foi fácil, mas era já insus-
tentável. Foi a primeira vez que chorei. Desabou tudo. Disse à Direção que
não queria mais isto para a minha vida. Deixei a coordenação e…continuei.
Foi um erro. Quando dei conta, já estava a coordenar outra vez. Até que…
aconteceu a tragédia com o meu pai”.
PAI
O dia acordou sossegado. Quente. Pedia maresia. A maioria já estaria a
torrar ao sol. Outra tanta, entre afazeres adiados ao longo do ano. Em casa
sabiam que o pai, nesse 12 de agosto de 2018, teria de ser operado. Uma ci-
rurgia programada feita ao domingo com grau de imprevisibilidade a roçar
o zero. Um ligeiro problema na coluna que recomendou que entrasse no
hospital sexta-feira à noite para os obrigatórios preparos. Patrícia acompa-
nhou o pai como pode devido ao trabalho aturado no jornal. Na véspera
da operação, conseguiu falar com o pai in extremis. O diálogo abordou a
necessidade de a filha tentar outro caminho sob pena de sugar-lhe os me-
lhores anos: “lamento que ele nunca me tenha visto sair do jornal e ver que
consegui ter outra vida. Era a vontade dele…o único conforto que tenho é
que fui a última pessoa a estar com ele. Deixei-o muito confiante e tranqui-
lo…”.
BURACO
O chão da casa entra em vácuo com o telefonema de domingo. Patrícia
recorda-o em detalhe: “é curioso que ia viajar para os Estados Unidos, uns
dias depois, com o meu irmão, a namorada e uns amigos. No entanto, tive
um pressentimento que algo não estava bem.
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