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REPORTAGEM


                MORRI                                                 iro, foi uma espécie de farol para avançar rumo ao Caminho de San-
                                                                      tiago, sonho antigo vezes sem conta adiado desde o 9.º ano escolar.
                Patrícia garante que já morreu. Um véu que a transportou em voo
               para destino incerto. Um tiro sem pólvora que recorda, hoje, com
               serenidade:  “morri  literalmente.  Não  tenho  dúvidas.  Hoje  consigo   "O luto tem de se viver e sentir, ponto.
               falar. Não deitei uma lágrima durante todo o processo. Não conse-
               guia, como não consegui enviar uma mensagem a ninguém. Nem   Não há outra forma! E dói, dói muito (...)
               responder, nem atender chamadas”.                      nós somos muito cruéis com as pessoas
                Meio ano volvido, acaba a agonia no corpo do pai. Pelo meio, um
               suplício diário. A lista de contactos muda e a decisão de não querer   enlutadas."
               manter a vida que tinha. Porém, a pressão de regressar ao trabalho
               era muita. Reerguer a cabeça. O manter a mente ocupada. Voltou.
               Um retorno agridoce: “não estava minimamente preparada, mas só   Antes, no último dia de junho de 2021, bateu com a porta da casa
               posso dizer bem do jornal. Foram muito amáveis comigo. No entan-  na qual entrou ao longo de mais de duas décadas: “ninguém acha-
               to, nunca sentimos a nossa dor validada. Sentia-me um extraterres-  va que eu teria coragem de deixar o jornalismo. Poucas pessoas sa-
               tre”.                                                  biam”. Nesse ano, ainda foi seduzida pelo Jornal de Notícias para
                A juntar a esta tortura, 10 meses antes tinha partido um dos me-  ser correspondente. Recusou. O mesmo não sucedeu quando em-
               lhores amigos da nossa entrevistada. Colega de profissão, desistiu   barcou para o Instituto Politécnico de Viana. A função foi menos
               da vida sem dizer adeus. E de novo a ironia de ter sido a última pes-  exigente o que não significa que fosse menos “extraordinária”. Po-
               soa a estar com ele. A revolta e a dúvida se algo falhou nessa tar-  rém, “não era feliz no que fazia. Só aceitei porque não tive coragem
               de. Seguiu-se o velório do amigo projetado em tantos olhares: “não   de negar à pessoa que me convidou e que me queria muito ao lado
               imaginam a quantidade de pessoas que apareceram junto de mim a   dela. Foi muito difícil sair de lá. Voltei a despedir-me. Queria sair da-
               querer saber coisas. As pessoas são muito cruéis. Ele era uma pes-  quele mundo e conseguir parar. Hoje continuo com um podcast que
               soa feliz naquele momento. Nada fazia prever aquilo acontecer. E eu   faz parte do meu projeto”.
               senti-me muito culpada. Procurei ajuda médica”.
                                                                        PROJETO
                RESSURGIR
                                                                        Vive em “licença sabática da vida”. Os fios ligam-se. Uma conexão
                Chegados aqui, a questão fulcral: como voltar a andar em paz?   com ajuda em desenvolvimento pessoal à custa de “mentoras fabu-
               Patrícia respira fundo e argumenta: “eu só tinha dois caminhos: ou   losas” que a resgataram para a superfície. O buraco foi pontapeado:
               morria ou seguia em frente. A vida colocou-me limites insondáveis.   “aí percebi que a Patrícia não era só aquilo e que o mundo não era só
               As pessoas são sábias e este fator pode ser determinante. Superar   aquilo. Eu estava completamente tolhida”.
               2019 foi um desafio difícil. Muito difícil”.
                                                                        Próximo passo foi entrar no primeiro curso da Academia de Luto.
                                                                      Um curso de suporte técnico ao luto, feito online, onde as ferramen-
                                                                      tas de combate à dor são transmitidas. Esta aposta significou intros-
                “…conseguimos manter a tradição                       peção. Pouca gente. Intimidade. Longe do rebuliço que caraterizou
               de cantar os parabéns à meia-noite.                    grande parte da sua vida.
                                                                        O aprender tem sido contínuo. Sem pressas até porque “pela mi-
               Foi e é uma grande vitória, fizemos                    nha experiência percebi que nada, absolutamente nada, nos prepa-
               isso mesmo no tempo em que o meu                       ra para ver partir a pessoa que nós mais amamos”. O luto “tem de se
               pai esteve em coma”. Nesse dia, com                    viver e sentir, ponto. Não há outra forma! E dói, dói muito”.
                                                                        No luto há verdade, garante Patrícia. E máscaras? “Nós mascara-
               bolo e “parabéns a você”, surge uma                    mos, mas não pode haver máscaras, até porque o luto é muito solitá-
               doce fotografia na cama do hospital                    rio, mas precisa de uma rede de apoio muito forte. E nós para termos
               do pai legendada com a frase O                         uma rede de apoio muito forte e coesa, essa rede de apoio tem de
               Amor Supera Tudo. A mesma que lhe                      estar devidamente informada, tem de saber aquilo que é mais ade-
                                                                      quado. E nós não sabemos, nós somos muito cruéis com as pessoas
               ilumina o espaço onde constrói vidas                   enlutadas”.
               em puzzle no projeto que a seguir                        A entrevistada afiança que o luto não é nenhuma doença: “é uma
               narramos”.                                             resposta natural, esperada e necessária. Quando perdemos alguém,
                                                                      muito, muito especial, como não sentir tudo aquilo que é natural? O
                                                                      nosso mundo assumido deixa de existir”. Uma carruagem que para
                                                                      em estações, por vezes sem luminária: “precisamos de apanhar os
                Passar os aniversários, as festas do Natal e da Páscoa…, “mas con-
               seguimos manter a tradição de cantar os parabéns à meia-noite. Foi   cacos  para  voltar a  colocar o  mundo  que nunca  mais  vai  ser igual
                                                                      … nós precisamos do nosso tempo, e nós somos todos diferentes,
               e é uma grande vitória, fizemos isso mesmo no tempo em que o meu
               pai esteve em coma”. Nesse dia, com bolo e “parabéns a você”, sur-  porque trazemos uma bagagem completamente diferente”. Nessa
               ge uma doce fotografia na cama do hospital do pai legendada com a   ótica, acrescenta, “o luto é tão único e é uma verdadeira montanha-
               frase O Amor Supera Tudo. A mesma que lhe ilumina o espaço onde   -russa. E nós, tendo essa informação, informação é poder”.
               constrói vidas em puzzle no projeto que a seguir narramos.  Com este contexto, nasce o projeto O Amor Supera Tudo. Já o te-
                                                                      mos rabiscado. Agora vamos focá-lo em três pilares que surgiram de
                ESBOÇO                                                forma “muito gradual”.
                Estar ligado à corrente. À família e aos que contam. Um cordão de   Mulher de datas, Patrícia começou por criar o blogue no dia do
               energia que serve, diariamente, para caminhar. Hoje “já me permito   seu aniversário. Poucos dias depois, a 1 de janeiro de 2021, podia ser
               emocionar e quando estou já não me travo, já me deixo ir”. Um flu-  visto com o  olhar do mundo. No  dia  do  Pai,  publicou o  Instagram
               ir que amacia a alma. Passado este período acredita que a frase O   e o Facebook. A 1 de julho “o primeiro dia do resto da minha vida”,
               Amor Supera Tudo foi “sussurrada pelo pai” no leito da cama porque   ou seja, entra a vapor o projeto, com muito estudo pelo meio e que
               “eu estava ao lado dele e eu escrevi isso na cama. Chamem-me lo-  passou a ser concretizado a 15 de outubro de 2022 quando aborda
               uca. O que quiserem”.                                  unicamente a temática do luto.
                Os dias iam destilando. Uns empurrados pelo vento Norte, outros
               acariciados pelo abraço da casa. Pegou no papel e foi escrevendo o
               que morava dentro de si. Voltou a ler. Paulo Coelho, escritor brasile-                               Continua
               62                                               JANEIRO · 2025                               #SIMatuaREVISTA
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