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CRÓNICA                                                                                                                                   SAÚDE


                                       BOCA DE INCÊNDIO
               A                       poesia  configura  sempre  um  acontecimento  que  trans-




                                       cende o imediatismo do real. É surpresa feita luz, rasgan-
                                       do-se em mistério e emprestando ao fluir pontual da vida o
                                       sortilégio da eternidade. O poeta António Machado acaba
                                       de editar (Junho de 2025) nas Edições Morfema o seu se-
                                       gundo livro de poesia, Boca de Incêndio.
                                       Tal como da primeira vez, com O Quarto de Costura (edi-
                                       ção de autor, 2023), tive o privilégio de acompanhar, com
                                       leituras parcelares, a maturação do conjunto poético, por-
                                       que os últimos anos, em que cruzamos diariamente na Fa-
                                       culdade de Filosofia e Ciências Sociais, me permitiram en-
                                       contrar sempre no Engenheiro Machado, que refaz a partir   abertas num corpo, que o “o amor incondicional é um mis-
                                       do caos a ordem, também o poeta capaz de lançar sobre o   tério / não é um algoritmo” (p.43).
                                       cascalho dos dias a poalha de luz suspensa que é a poesia.
                                                                                  Todos juntos, os sessenta e oito poemas são um contínuo
                                       Percebemos  desde  a  metáfora  complexa  do  título  -  ele
                                       já um poema - que este livro de poemas nos fala sobre o   fluir de sentido, e nunca deixam para trás, mas actualizam
                                       fogo. O fogo interior que habita a matéria, e que o poeta   sempre, o vínculo do poeta com a matriz que traz da in-
                                       taumaturgo  oferece  em  diálogos  silentes  a quem  lê.  O   fância, da mãe e do pai, e dos irmãos todos, aconchegados
                                       fogo que habita todos os poetas e todos os leitores, desde   à mesma luz do quarto de costura e do crepitar da lareira,
                                       a aurora dos tempos. O fogo, dado na origem a todos ho-  da mó e das minas de Jales, da esposa e dos dois filhos, e
                                       mens, como um sopro de absoluto, capaz de se incendiar   de todos os instantes e memórias que o habitam, como um
                                       nos silêncios, de rasgar insónias, e de iluminar memórias.   fogo generoso, quando vive o cascalho dos dias coroado
                                       O fogo que empresta ao fluir pontual da vida o sortilégio   da poalha de luz da poesia.
                                       da eternidade.
                                                                                  E foi porque tive o privilégio de o ver organizar-se, o livro,
                                       Iniciando num Prólogo inspirado na Antígona de Sófocles,   do  caos  primeiro,  todo  fogo  a  romper  das  trevas,  nesta
                                       e a fechar, numa geometria especular, num Epílogo, com   Boca de Incêndio (que é a do poeta incendiário, a rasgar
                                       a certeza de que “tudo é fogo/que o sangue não apaga”   as pedras para libertar o fogo que as habita, e delas trazer
                                       (p.95)-  as metáforas do fogo irradiam de uma experiência   luz), que aceitei com muito gosto prefaciar e apresentar a
                                       que se adivinha autobiográfica, a partir da esfera profissio-  obra, a oferecer-se à consciência dos leitores nesse misté-
                                       nal dos Sistemas, que manam depois para a experiência   rio único de luz e fogo, que transcende o imediatismo do
                                       íntima do Acendo a luz, e para as memórias familiares de   real. Na verdade, só a Poesia e os Poetas resgatam do devir
                                       Uma casa no tempo, a expandirem-se em A mãe, a mó,   irremediável a luz interior das coisas. Retraindo do fluxo
                                       as minas e outros triggers; e neste surpreendente abrir de   que passa o momento que não pode passar, porque é ab-
               Ana Paula Pinto         veios na crosta profunda da superfície, parece reservar-se   soluto. E nos anima como um fogo.
               Professora Auxiliar de Estudos Clássicos   a centralidade simbólica do testemunho aos tão tocantes
               da Faculdade de Filosofia e Ciências   Diálogos de pai e Diálogos de mãe, onde nunca deixa de   E vale bem a pena “queimar os pés no fogo ardente”. Neste
               Sociais da Universidade Católica   sublinhar-se,  composição  a  composição,  como  feridas   fogo ardente.
               Portuguesa, professora bibliotecária da
               Biblioteca Padre Júlio Fragata e Diretora
               da Revista Portuguesa de Humanidades.
               Email: appinto@ucp.pt




























               70                                                JULHO · 2025                                #SIMatuaREVISTA
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