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JUSTIÇA
Tenho visto um cavalo preso com uma corda não
muito grande num terreno em frente à minha casa.
Nunca vi ninguém a levar-lhe comida ou bebida
e custa-me vê-lo confinado àquele curto espaço,
sempre desabrigado, principalmente em dias de
maior calor. Há forma de ajudar o animal?
A NÃO HÁ ESPÉCIE PARA O SOFRIMENTO
rá estar-se perante um cenário de maus-tratos.
questão coloca-se de forma pungente e não é
Mais ainda, é inequívoco que qualquer animal,
incomum. As preocupações da leitora têm fun-
damento não só ético, mas também legal. Desde
seja cão, gato ou cavalo, não deve ser mantido
2014, o Código Penal português passou a crimi-
em condições que comprometam o seu bem-es-
nalizar os maus-tratos e o abandono de animais
tar ou que lhe causem sofrimento injustificado.
de companhia, reconhecendo, pela primeira vez,
A privação de alimento, de abrigo ou de espaço
que estes seres vivos, dotados de sensibilidade,
não podem ser tratados como meras coisas. Com
maus-tratos físicos ou negligência grave.
a entrada em vigor, em 2017, do Estatuto Jurídico
A jurisprudência tem enfrentado dificuldades
dos Animais, esse reconhecimento ganhou ainda adequado constitui, por si só, um indício sério de
maior densidade, estabelecendo que os animais na aplicação destes conceitos, nomeadamente
gozam de proteção jurídica própria. quanto à determinação exata do bem jurídico
protegido e à definição do que constitui, de for-
O Código Penal português dispõe que quem ma objetiva, “maus-tratos”. Ainda assim, o Tribu-
infligir, sem motivo legítimo, dor, sofrimento ou nal Constitucional já reconheceu que o bem-es-
maus-tratos físicos a um animal de companhia in- tar dos animais de companhia é compatível com
corre em pena de prisão até um ano ou em pena a proteção constitucional que consagra o direito
de multa até 120 dias. Se da conduta resultar a a um ambiente de vida sadio e ecologicamen-
morte do animal, a privação de órgão ou membro, te equilibrado. O sofrimento animal, sobretudo
ou a afetação grave e permanente da sua capa- quando causado por ação ou omissão humanas
cidade de locomoção, a pena agrava-se até dois injustificadas, fere este equilíbrio e deve, por isso,
anos de prisão ou 240 dias de multa. Além dis- ser prevenido e sancionado.
so, sanciona também o abandono de animais de
companhia, punindo quem, tendo o dever de os Importa ainda realçar que o crime de maus-tratos
guardar ou assistir, os abandona, colocando em de animais de companhia é de natureza pública,
risco os cuidados e a alimentação de que depen- o que significa que qualquer cidadão pode – e
dem. deve – agir. Assim, perante a suspeita de maus-
Mas pode um cavalo ser considerado “animal de -tratos, qualquer pessoa pode apresentar queixa
companhia”? A resposta exige atenção. A legis- junto das autoridades competentes: PSP, GNR,
lação penal define “animal de companhia” como SEPNA, Polícia Municipal ou o próprio Médico
aquele que é detido ou destinado a ser detido por Veterinário Municipal. Em casos mais graves e
Dra. Filipa Menezes seres humanos, em casa, para entretenimento e urgentes, é possível ainda requerer ao Ministério
Público que promova a retirada do animal, volun-
ADVOGADA companhia. É verdade que, tradicionalmente, ca-
valos são associados à atividade agrícola, pecuá- tária ou coercivamente.
ria ou desportiva – situações que, como refere a Viver à vista de um animal confinado em sofri-
própria legislação, estão excluídas da proteção mento constante não deve ser normalizado nem
penal. Porém, esta exclusão não é absoluta: tudo ignorado. O dever de proteção cabe ao Estado,
dependerá da forma como o animal é mantido e sim, mas começa também em cada um de nós, ci-
da finalidade da sua detenção.
dadãos conscientes, atentos e informados. O que
Se o cavalo se encontra confinado num espaço está em causa não é apenas a aplicação da lei – é
exíguo, sem abrigo, aparentemente sem aces- uma questão de empatia, de justiça mínima e de
so a água ou alimento e sem supervisão, pode- civilidade.
#SIMatuaREVISTA JULHO · 2025 83