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CRÓNICA
ESTÁTUA DE SAL
A mulher de Lot olhou para trás e transformou-se numa é observar para imaginar. É como manter a virgindade de
estátua de sal.” Assim reza o versículo 26 do capítulo 19
tudo fazendo amor com a terra. “Tudo nesta terra me im-
do Génesis, referindo-se à esposa de Lot, mulher sem
pressiona muito, me impressiona de mais”, escreve Maria
nome nem história que desobedeceu à ordem de Deus
Ondina acerca de Macau.
de fugir da destruição de Sodoma sem olhar para trás.
Em Estátua de sal, olha para trás com saudade blasfema,
Olhar para trás é sinal de saudade do que Deus odeia.
pondo em causa os imperativos de uma infância inçada
Então porque terá olhado para trás a mulher de Lot?
Talvez para não ver mais quem lhe conduzia os passos.
sofrimento: “na igreja, os sacerdotes, as catequistas, con-
Aonde quer que fosse, ela seria sempre a mulher de Lot.
tavam casos terríveis de meninos no inferno por pecados
A desobediência transformou-a em algo único que ain-
não confessados”, ou “chegando a Sexta-Feira Santa, a
da hoje está briosamente de pé, segundo dizem, olhan- de medos à desobediência e de necessidade de mostrar
do para trás em audacioso desafio, a sul do rio Arnon, às mãe dizia para ficarmos tristes”.
margens do Mar Morto. A escrita espontânea, natural como o curso da água, é o
Estátua de sal é o título de um fascinante romance memo- fluir da liberdade. Sem leito confinado, espraia-se o rio
rialista de Maria Ondina Braga, a mulher que desobede- com a cor cerúlea do mar, derramando-se para poder al-
ceu a tudo o que se esperava dela. Nascida numa cidade cançar o que fica mais além, para lá do visível, em estímu-
provinciana e convencional, esta Braga que até das está- los sensoriais fazendo lembrar Virginia Woolf, Agustina
tuas nuas tinha medo (que o diga a Diana do Nosso Café), Bessa-Luís ou Clarice Lispector, mulheres que mergulham
decidiu olhar por cima do ombro para contemplar um profundamente nas paixões da alma através de uma es-
passado que a agarrava ao chão. Numa espécie de sau- crita muito íntima, em que sentimos o hálito quente das
dade catártica, expõe-nos a sua recusa de sujeição igual palavras sussurrando só para nós. A linguagem sugestiva
à daquela mulher angolana que um dia viu e “que parecia não condescende com a preguiça, obriga a devanear; e as
possuída de um cansaço tão antigo como a sua condição pessoas, passando, não passam em vão, pois são tomadas
de mulher” (em Passagem do Cabo). Então desfraldou pela fantasia: “Pessoas que se cruzam, olhares que se to-
as velas e cavalgou as ondas do mar — sim: Ondina! — em cam. Lembras-te? Parecias-te comigo. Não sei bem em
peregrinação rumo à fortuna. Não como Fernão Mendes quê. Talvez na distância que respeitavas. Voltámos uma
Pinto na busca da Índia, ou do Eldorado, mas como mu- curva. Perdemo-nos ao largo. Que bom agora tornar a
lher solitária sem medo da solidão — ou melhor: amante encontrar-te!”. Encontrar onde? E quando? Em toda a
da solidão. Se evocou os antepassados portugueses nas parte e quando se quiser. Vira-se uma página no dobrar da
deambulações pelo mundo, não quis do mundo senão a esquina; e atrás da página está o Universo, tão minúscu-
riqueza que é viver. “Eu vim para ver a terra”, disse ela. Para lo como o cubículo de dormir de Maria Ondina, ou como
ver, não para ter. A mulher que deveria casar para ser fiel a mesa onde escrevia, que tinha dois palmos, suficiente-
a um costume, nunca casou, nunca atou laços que não se mente vasta para nela caber a viagem: “acima de tudo,
desfizessem com o ténue sopro da maresia. Casar porquê, quero encontrar-me comigo”.
se “a norma do comportamento da mulher casada era nem
mais nem menos que a submissão”? (Assim se pode ler em E o que é a saudade senão evocar o que é bom, que até do
Vidas vencidas). Pensava em partir, partir sempre, que só rio sujo só evapora o que é água pura? Termino com Maria
estava bem onde não estava: “Partir é bom, mas pensar Ondina Braga mostrando carinho por alguns pormenores
em partir é melhor ainda”, porque chegar é o desencanto estimulantes da cidade onde nasceu: “Braga tem assim
de um término. “Eu toda livre de compromissos”, procla- nomes lindos de santos a dar poesia aos velhos lugares. É
ma. Como apresentar-se melhor alguém que se espanta a Senhora do Leite, a Senhora-a-Branca, o Bom Jesus” —
perante o mundo? Ela achava que o que mais vale a pena Bom Jesus que é para ela “um poema mineral”.
João Nuno Azambuja
68 MARÇO · 2025 #SIMatuaREVISTA