Page 68 - SIM 304
P. 68

CRÓNICA


                                      ESTÁTUA DE SAL
                A                     mulher de Lot olhou para trás e transformou-se numa   é observar para imaginar. É como manter a virgindade de



                                      estátua de sal.” Assim reza o versículo 26 do capítulo 19
                                                                                  tudo fazendo amor com a terra. “Tudo nesta terra me im-
                                      do Génesis, referindo-se à esposa de Lot, mulher sem
                                                                                  pressiona muito, me impressiona de mais”, escreve Maria
                                      nome nem história que desobedeceu à ordem de Deus
                                                                                  Ondina acerca de Macau.
                                      de fugir da destruição de Sodoma sem olhar para trás.
                                                                                  Em Estátua de sal, olha para trás com saudade blasfema,
                                      Olhar para trás é sinal de saudade do que Deus odeia.
                                                                                  pondo  em  causa  os imperativos  de  uma  infância  inçada
                                      Então  porque  terá  olhado  para  trás  a  mulher  de  Lot?
                                      Talvez para não ver mais quem lhe conduzia os passos.
                                                                                  sofrimento: “na igreja, os sacerdotes, as catequistas, con-
                                      Aonde quer que fosse, ela seria sempre a mulher de Lot.
                                                                                  tavam casos terríveis de meninos no inferno por pecados
                                      A desobediência transformou-a em algo único que ain-
                                                                                  não  confessados”,  ou “chegando  a Sexta-Feira  Santa,  a
                                      da hoje está briosamente de pé, segundo dizem, olhan-  de medos à desobediência e de necessidade de mostrar
                                      do para trás em audacioso desafio, a sul do rio Arnon, às   mãe dizia para ficarmos tristes”.
                                      margens do Mar Morto.                       A escrita espontânea, natural como o curso da água, é o
                                      Estátua de sal é o título de um fascinante romance memo-  fluir  da  liberdade.  Sem  leito confinado,  espraia-se  o rio
                                      rialista de Maria Ondina Braga, a mulher que desobede-  com a cor cerúlea do mar, derramando-se para poder al-
                                      ceu a tudo o que se esperava dela. Nascida numa cidade   cançar o que fica mais além, para lá do visível, em estímu-
                                      provinciana e convencional, esta Braga que até das está-  los  sensoriais  fazendo  lembrar  Virginia  Woolf, Agustina
                                      tuas nuas tinha medo (que o diga a Diana do Nosso Café),   Bessa-Luís ou Clarice Lispector, mulheres que mergulham
                                      decidiu  olhar  por  cima  do  ombro  para  contemplar  um   profundamente nas paixões da alma através de uma es-
                                      passado que a agarrava ao chão. Numa espécie de sau-  crita muito íntima, em que sentimos o hálito quente das
                                      dade catártica, expõe-nos a sua recusa de sujeição igual   palavras sussurrando só para nós. A linguagem sugestiva
                                      à daquela mulher angolana que um dia viu e “que parecia   não condescende com a preguiça, obriga a devanear; e as
                                      possuída de um cansaço tão antigo como a sua condição   pessoas, passando, não passam em vão, pois são tomadas
                                      de  mulher” (em  Passagem  do  Cabo). Então  desfraldou   pela fantasia: “Pessoas que se cruzam, olhares que se to-
                                      as velas e cavalgou as ondas do mar — sim: Ondina! — em   cam.  Lembras-te? Parecias-te comigo.  Não  sei bem  em
                                      peregrinação rumo à fortuna. Não como Fernão Mendes   quê.  Talvez  na  distância  que  respeitavas.  Voltámos  uma
                                      Pinto na busca da Índia, ou do Eldorado, mas como mu-  curva.  Perdemo-nos  ao  largo.  Que bom  agora  tornar  a
                                      lher solitária sem medo da solidão — ou melhor: amante   encontrar-te!”.  Encontrar  onde?  E  quando?  Em  toda  a
                                      da solidão. Se evocou os antepassados portugueses nas   parte e quando se quiser. Vira-se uma página no dobrar da
                                      deambulações pelo mundo, não quis do mundo senão a   esquina; e atrás da página está o Universo, tão minúscu-
                                      riqueza que é viver. “Eu vim para ver a terra”, disse ela. Para   lo como o cubículo de dormir de Maria Ondina, ou como
                                      ver, não para ter. A mulher que deveria casar para ser fiel   a mesa onde escrevia, que tinha dois palmos, suficiente-
                                      a um costume, nunca casou, nunca atou laços que não se   mente vasta para  nela  caber  a viagem:  “acima  de tudo,
                                      desfizessem com o ténue sopro da maresia. Casar porquê,   quero encontrar-me comigo”.
                                      se “a norma do comportamento da mulher casada era nem
                                      mais nem menos que a submissão”? (Assim se pode ler em   E o que é a saudade senão evocar o que é bom, que até do
                                      Vidas vencidas). Pensava em partir, partir sempre, que só   rio sujo só evapora o que é água pura? Termino com Maria
                                      estava  bem  onde  não  estava:  “Partir  é  bom,  mas  pensar   Ondina Braga mostrando carinho por alguns pormenores
                                      em partir é melhor ainda”, porque chegar é o desencanto   estimulantes  da  cidade  onde  nasceu:  “Braga  tem  assim
                                      de um término. “Eu toda livre de compromissos”, procla-  nomes lindos de santos a dar poesia aos velhos lugares. É
                                      ma. Como apresentar-se melhor alguém que se espanta   a Senhora do Leite, a Senhora-a-Branca, o Bom Jesus” —
                                      perante o mundo? Ela achava que o que mais vale a pena   Bom Jesus que é para ela “um poema mineral”.
               João Nuno Azambuja































               68                                               MARÇO · 2025                                 #SIMatuaREVISTA
   63   64   65   66   67   68   69   70   71   72   73