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CRÓNICA                                                                                                                                COMÉRCIO


                                       O MEU NOME É 174.517
               P                      or minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944».   soviéticos, que abriram os portões de Auschwitz, comete-



                                      Parece incrível alguém associar a palavra sorte ao Inferno,
                                                                                  ram crimes hediondos que ficaram impunes por terem ven-
                                                                                  cido o conflito. Também a eles lhes caíram os ferrolhos da
                                      mas um homem que passou pelos antros da mais pungente
                                      crueldade humana sabe o que quis dizer. Trata-se do judeu
                                                                                  ordem para levarem avante os seus desígnios.
                                      italiano Primo Levi, que esteve preso em Auschwitz até à
                                                                                  Contudo, os nazis foram capazes de ir ao extremo de pla-
                                      descoberta do campo pelas tropas soviéticas, em janeiro de
                                                                                  near e executar um genocídio sistemático até ao derra-
                                      1945 — celebraram-se agora os oitenta anos da libertação —,
                                      e que assim inicia o prefácio ao seu livro intitulado Se isto é
                                                                                  Eichmann), e eram tão frias como pragmáticas: “É difícil o
                                      um homem, ele que perdeu o nome à chegada, para rece-
                                                                                  que vamos fazer, mas o interesse da nação assim o exige”.
                                      ber um número tatuado no braço, 174.517, pelo qual passou
                                                                                  Então, o interesse de um momento sinistro da história da
                                      a ser tratado, como mais uma marca de sórdida humilhação.   deiro ser vivo. As ordens vinham de cima (a alegação de
                                      Levi chama-lhe sorte somente porque sobreviveu, e sobre-  humanidade levou por diante o massacre premeditado de
                                      viveu por meras questões práticas, uma vez que a escassez   inocentes pelas mãos de assassinos vestidos de funcioná-
                                      de mão de obra no campo de concentração naquela altura   rios públicos. Era o emprego deles: escravizar, humilhar e
                                      forçou a administração nazi a prolongar a vida de alguns pri-  matar. A crueldade mais profunda não está naquelas pala-
                                      sioneiros, necessários ao trabalho escravo antes da chacina.   vras da chefia, está na obediência passiva dos que cumpri-
                                      Os outros iam sendo metodicamente exterminados por   ram a tarefa.
                                      motivos raciais e políticos”.               Theodor Adorno ficou tão horrorizado com estas atrocida-
                                                                                  des  que proclamou: “Depois de  Auschwitz, seria bárbaro
                                      Hannah Arendt disse que isto é possível quando o mal se
                                      banaliza. Adolf Eichmann, capturado pelos israelitas já de-  escrever poesia”. Só que a poesia não é passível de extermí-
                                      pois da guerra, foi levado a julgamento pela sua participa-  nio. “A morte é um mestre que veio da Alemanha”, escreveu
                                      ção na tenebrosa Solução Final. Diante dos juízes, quis des-  Paul Celan em 1945, o poeta que fez da poesia uma arma
                                      culpar-se alegando que apenas cumpria ordens superiores.   contra o conformismo. É fundamental capacitarmo-nos de
                                      A leviandade com que alguém pretende indultar-se desta   que a obediência também pode ser crime. E uma obediên-
                                      maneira, se é chocante, é precisamente o que permite bar-  cia como a dos funcionários de Auschwitz leva-nos a ques-
                                      baridades como o extermínio de seres humanos em fábricas   tionar: serão mesmo homens? Schopenhauer diz que sim, e
                                      de morte. É significativo que Nietzsche tenha dito, muito   acrescenta que a única classe honesta é a dos capitalistas,
                                      antes, que os alemães, sobretudo os intelectuais, possuem a   pois só eles não escondem, revelam-se tal como são: frios
                                      mentalidade dos animais de rebanho (qualquer tentativa de   e cruéis. O lucro desculpa tudo, porque os fins justificam os
                                      conotação de Nietzsche com o nazismo — como já tentaram   meios. O seu ferrolho é a força da lei.
                                      fazer — é pura invenção).                   Termino com um excerto do poema com que Primo Levi nos
                                                                                  abre o livro Se isto é um homem, onde relata os tratamentos
                                      Mas um alemão destes não deixa de ser humano. Scho-  mais aviltantes que é possível imaginar (ou impossível), os
                                      penhauer, num dos seus aforismos dedicados à Ética, es-  mesmos que ele sofreu:
                                      creveu, um século antes do Holocausto: “O homem é um
                                      temível animal selvagem. Nós só conhecemos esse animal   “Considerai se isto é um homem
                                      no estado domesticado a que se chama civilização, por isso   Quem trabalha na lama
                                      ficamos chocados com ocasionais revelações da sua ver-  Quem não conhece a paz
                                      dadeira natureza, mas quando caem os ferrolhos da ordem   Quem luta por uma côdea de pão
                                      legal, ele revela-se como é”. Parece que só debaixo de um   Quem morre por um sim ou por um não.
                                      jugo podemos ser solidários, o que é um pouco assustador.   Considerai se isto é uma mulher
                                      Mas veja-se que quando se dá rédea solta às nossas ações,   Sem cabelo e sem nome
                                      o caos instala-se, e assistimos hoje a matanças descontro-  Sem mais força para recordar
                                      ladas sob o argumento de uma legalidade inexplicável. Já   Vazios os olhos e frio o regaço
               João Nuno Azambuja     morreu muita mais gente na Ucrânia do que na calamitosa   Como um sapo no inverno”.
                                      guerra civil de Espanha, e em menos tempo. Na guerra do
                                      Hamas não vislumbramos o fim do morticínio. Os próprios                     (Primo Levi)




























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