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OPINIÃO
A DITOSA PÁTRIA DE CAMÕES
D urante a Guerra Colonial, os soldados portugueses que portuguesas, são versos da epopeia. O das tropas para-
quedistas, onde militei, é: “Que nunca por vencidos se
iam de navio para Moçambique, muitos deles homens
conheçam”, do canto VII, estância 71.
sedentários forçados a viajar pelo mundo por imperativo
da guerra, tinham de passar o cabo da Boa Esperança,
É tão eletrizante a magia de Os Lusíadas que convenceu
onde pousava o tenebroso Adamastor. A expectativa de
o tribunal da Inquisição, ao permitir que se publicasse
ver o rude promontório era para muitos uma experiên-
um texto em que deuses adversários do cristianismo
cia mística. Eles levavam Camões no subconsciente. O
Adamastor nunca existiu, mas aqueles homens iam na
visitam uma ilha plena de erotismo, onde soltam o apeti-
fascinante expectativa de o ver, mesmo sabendo que
te sexual correndo atrás de mulheres nuas. O censor do
não existia. intervêm na ação dos marinheiros portugueses, que até
Santo Ofício teve de se justificar dizendo no parecer fi-
Camões penetrou fundo na alma portuguesa e – pode nal que o poeta usou de uma fábula de deuses, mas que
dizer-se – que a formou. Tornou-a universalista e aque- “todos esses deuses são demónios” e nem se atreveu
les que rumavam Moçambique iam à procura de um a aludir à Ilha dos Amores. É que a poesia de Camões,
pedaço dela nos confins da África, no fundo do mar e elevada à mais pura liberdade artística, é desarmante
na infinidade do céu: “Voar com o pensamento a toda a como um milagre. Diz-se “língua de Camões” porque
parte”. Se a batalha de Aljubarrota confirmou Portugal ele conseguiu, de facto, fazer milagres com a língua por-
como reino independente na Península Ibérica, Camões tuguesa. Se não inventou palavras, como atesta o pro-
afirmou Portugal não só no mundo, mas no tempo e na fessor Fernando Venâncio, enriqueceu o léxico a partir
lenda. Mesmo que Portugal deixe de existir como na- do latim (Vénus, afeiçoada à gente lusitana, crê que a
ção, existirá como mito, e o artífice da eternidade lusa é língua portuguesa é quase a latina, como podemos ler
o poeta dos Lusíadas. Portugal teria acabado em 1580 se na estância 33 do canto I); mas, muito mais do que isso,
não fosse ele. É que passou a haver uma responsabilida- inventou uma estranha sintaxe que soa aos ouvidos
de enorme: a identidade como ideia. E esta ideia assim como magia. “Todas as deusas desprezei do céu, só por
formada recusou o jugo. A revolta de 1640 e a Restau- amar das águas a princesa”, disse o Adamastor a Vasco
ração de Portugal devem-se a Camões. Depois dele, a da Gama, referindo-se à linda Tétis, que tanto amava,
sujeição seria um contrassenso. O mito que passou a ser mas “pela grandeza feia de meu gesto”, era impossível
Portugal edificou a esperança messiânica do sebastia- satisfazer essa paixão: “Qual será o amor bastante de
nismo. Não se trata de nacionalismo, mas de consciência ninfa que sustente o de um gigante?” (canto V, 52 e 53).
de existir e de vontade de ser eterno. Podemos pegar na Veja-se a ordem das palavras na primeira frase, um mi-
fórmula de Descartes e dizer: Portugal, logo Camões (ou raculoso hipérbato que só Camões é capaz de construir,
vice-versa). Fala-se de vez em quando da integração de e veja-se como o poeta descreve subtilmente a titânica
Portugal em Espanha, que isso seria uma boa solução. A fealdade do monstro.
poesia não o permite e é isto que as mentes utilitaristas
não compreendem. Se o corpo morrer, a alma resplan- E se Os Lusíadas são o fado de Portugal, a lírica camo-
decerá. Nem só do PIB vive uma nação e, se a vida não niana é o fado do ser humano. A intensidade dos senti-
mentos atinge o sublime: o amor, o desespero, a sauda-
basta, nós temos Luís Vaz de Camões.
de, a desilusão, a esperança, a contemplação, a solidão,
Até o lema do nosso país (“Esta é a ditosa pátria minha a turbulência, o assombro, a indecisão, a insatisfação. É
amada”, canto III, 21) e os lemas de muitas instituições mesmo isto: nunca estaremos satisfeitos de Camões.
João Nuno Azambuja
84 DEZEMBRO · 2024 #SIMatuaREVISTA