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CRÓNICA
O VATE DAS NOITES ESTRELADAS
F oi desta forma que a escritora Maria Adelina Vieira se Então, embrenhando-nos nas suas palavras, somos cap-
referiu recentemente a Sebastião Alba, o homem que
turados por elas, até porque não há lugares-comuns na
poesia de Alba, as imagens são singulares e surpreenden-
nos mostrou ser possível viver com pouquíssimos bens
tes: “Deito-me na rede atada / aos pináculos do fuso ho-
— devemos parar uns instantes para refletir acerca da
nossa vida de acumuladores. Uma prova disto é que
rário. / Tivessem meus dias um dono / ao alcance da voz
/ que por mim cora; sem pejo / o adularia” (em O limite
frequentemente não temos sítio para deixar o carro,
esse apêndice que adoramos incorporar. Ele andava a
pé, não só em Braga mas por todo o Minho, para conhe-
Embriagava-se de vinho e de liberdade, e com tanta vee-
cer verdadeiramente as pessoas e os lugares. Amava as
mência que por vezes despertava enleado na teia do seu
crianças e todos os seres vulneráveis. “Às vezes acor- diáfano).
do, às quatro da manhã, a pensar em pardais nos ramos, excesso: “Fui longe de mais dentro de mim”, disse numa
com o bico sob a asa, fustigados pela chuva, à espera ocasião ao amigo Vergílio Alberto Vieira. Viveu energica-
que o sol raie”, disse um dia este homem que dormia mente os sentimentos da alegria e os da tristeza, e os da
ao relento, como um pardal fustigado pela intempérie. saudade, assim como os da paixão de ver o inédito sem
carregar nada de passado nem de supérfluo: “Enceto as
Foi um poeta total, ele que fez da sua vida intensa um poe- viagens que faço / com escassos aprestos” (em A noite
ma vadio: “Aqueço-me a um fogo / que só a minha / res- dividida).
piração ateia” (em O limite diáfano). Livre, cínica e trágica A escolha dos vocábulos, e a sua disposição nos poemas,
foi a sua existência, percorrida a amar poderosamente e a são invulgares, criando um traçado musical desconcer-
pensar em versos. Esta espécie de Diógenes que despre- tante: “Palavras de ponta e mola / que anavalham / as
zava as convenções sociais (não raras vezes hipócritas) roçagantes capas / de velhos mestres / de grácil esgri-
nasceu com o nome Dinis Albano Carneiro Gonçalves, ma” (em A noite dividida). Repare-se nesta imagem tão
em Braga. Foi para Moçambique, tornou-se moçambica- sugestiva: as palavras são de ponta e mola, como navalhas
no, chegando a ser convidado para administrar a provín-
cia da Zambézia, mas desiludiu-se com as injustiças que que vão atacar rápida e violentamente. A análise interior, a
a política também arrasta consigo. Regressou, foi-se pro- contemplação do mundo, as figuras que Sebastião Alba
gressivamente isolando, até passar a viver na rua — onde nos vai desenhando dentro da cabeça, compelida a fo-
cinicamente morreu, como um cão de Diógenes. car-se, a ponderar e a imaginar — como em “cores que
a neblina desembrulha”, ou “os ócios entrenublam-se”,
Este vate deseducado e barbudo espalhava folhas soltas ou em “inacessibilidade transparente” —, fazem dele um
pelas caixas de correio dos amigos, como se fosse o outo- poeta excecional.
no personificado. Andava sempre com uma caneta, para Se a sua poesia merece indubitavelmente ser lida, o seu
escrever quando lhe ocorresse uma ideia. De súbito, pre- exemplo de vida, no tocante ao amor pela liberdade, à
cisava urgentemente de um papel. “Escrevo nos papéis renúncia e à singeleza, merece ser imitado. Veja-se este
que encontro”, disse um dia, “até em guardanapos e pa- caso extraordinário, que ilustra na perfeição a génese da
pel higiénico.” Depois, sorrindo, acrescentou com graça: própria humanidade: a privação, que é o que aguça o en-
“Não escrevo em papel higiénico cor-de-rosa, não gosto genho. Quando alguns amigos de infância, que já não via
de poesia lírica”.
há muito tempo, souberam que dormia ao relento, disse-
Senhor de uma originalidade expressiva, os seus poemas ram-lhe: “Venha dormir cá a casa. Aqui não lhe falta nada”.
introspetivos não são fáceis. Obrigam a pensar e a reler, Ele respondeu: “É disso que eu tenho medo, que não me
com calma; forçam-nos ao despojamento das normas. falte nada”.
João Nuno Azambuja
68 NOVEMBRO · 2025 #SIMatuaREVISTA

