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JUSTIÇA                                                                                                                                 CRÓNICA






                                         Estou casada em comunhão de adquiridos e em
                                           processo de divórcio. Vivemos numa casa que
                                        construímos juntos, mas o terreno era só meu antes
                                       do casamento. O meu marido insiste que a casa é um
                                                  bem comum. Quem tem razão?








               C                       QUEM PODE FICAR COM A CASA?



                                       ara leitora,
                                                                                  significa que o seu marido fique de mãos vazias. Se
                                                                                  ele contribuiu financeiramente, com trabalho ou de
                                       A sua questão é das mais frequentes e delicadas nos
                                                                                  qualquer outra forma relevante para a construção,
                                       processos de divórcio: afinal, a quem pertence a casa
                                                                                  tem direito a ser compensado no momento da parti-
                                       do casal quando foi construída pelos dois, mas em
                                                                                  lha. Isto garante que o esforço comum não se perde,
                                       terreno que é apenas de um deles? A dúvida parece,
                                                                                  mesmo  que  a  titularidade  formal  permaneça  com
                                       à primeira vista, apenas jurídica, mas tem também
                                                                                  quem possui formalmente o terreno.
                                       uma carga emocional e de justiça. Numa casa não se
                                       investe só dinheiro. Investem-se também projetos,
                                                                                  investidos por um casal que construiu uma casa em
                                       tempo e vida em comum. É natural sentir-se divida
                                                                                  conjunto são reconhecidos. O tribunal calculará um
                                       entre a titularidade formal do terreno e a perceção   Nesse sentido, o esforço, a dedicação e a energia
                                       de que a casa foi construída em esforço partilhado, e   valor de compensação justo para o cônjuge que não
                                       ainda mais natural é que o outro cônjuge possa sen-  detém o terreno. Porém, além do valor monetário, o
                                       tir uma espécie de perda ou exclusão se esse contri-  reconhecimento do contributo de cada um é tam-
                                       buto não for reconhecido.                  bém uma forma de honrar o que ambos construíram
                                                                                  juntos: uma lembrança de que, mesmo nas separa-
                                       Durante anos, os tribunais portugueses não tiveram   ções, existem vínculos e responsabilidades que per-
                                       uma posição uniforme. Uns entendiam que a casa   manecem, e que o sistema procura respeitar.
                                       era apenas uma benfeitoria no terreno do cônjuge
                                       proprietário, cabendo ao outro apenas a compensa-  Assim, a razão formal permanece do lado da leitora.
                                       ção pelo investimento feito. Outros defendiam que,   A casa é sua, por se tratar de um bem próprio. Não
                                       por ter resultado do esforço conjunto, a habitação   obstante, a justiça material também protege o esfor-
                                       devia ser considerada bem comum, a dividir na par-  ço que o seu marido dedicou. É esse equilíbrio que
                                       tilha. Esta divergência gerava situações complexas,   a lei procura: respeitar a titularidade individual, sem
                                       em que casais terminavam processos de forma mui-  deixar de reconhecer o valor do contributo comum,
                                       to diferente, dependendo do tribunal ou do juiz que   e, de certa forma, restaurar a harmonia no que foi
                                       analisava o caso.                          construído em conjunto.
                                                                                  Em suma, a casa e o terreno são considerados bens
                                       O Supremo Tribunal de Justiça veio, no entanto, em
                                       setembro de 2025, pôr fim a essa incerteza com uma   da leitora, mas o seu marido terá direito a uma com-
                                       decisão clara: quando uma construção se ergue so-  pensação justa. Uma solução que, mais do que di-
                                       bre um terreno que pertence apenas a um dos côn-  vidir bens, procura honrar o que cada um deu para
                                       juges, tanto o terreno como a casa são bens próprios   que essa casa tivesse sido construída. E, talvez, esta
                                                                                  seja a lição mais importante: mesmo nas separações,
                                       desse cônjuge. A lei prevê que o acessório segue o   a lei tenta equilibrar propriedade, esforço e relações
                                       principal, e, por isso, a habitação passa a fazer parte   humanas, reconhecendo que aquilo que se constrói
                                       do solo que já era seu.
               Dra. Filipa Menezes                                                em conjunto mantém sempre uma espécie de liga-
               ADVOGADA                No caso partilhado pela leitora, isso significa que o   ção, visível ou invisível, entre aqueles que partilha-
                                       terreno e a casa lhe pertencem. No entanto, isso não   ram a jornada.









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