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CRÓNICA


                                      O ANJO DE BRAGA
                   H                  á vultos ilustres que são ilustres desconhecidos. Entre   vocalista da banda rock The Cure, mas não). Infelizmente,



                                      eles está quem iluminou (ornou de iluminuras) a cópia
                                                                                  ao gigante André Soares concederam uma ruela minúscu-
                                      dos quatro evangelhos denominada Livro de Kells, na
                                                                                  la, que vai dar à escola do mesmo nome, nesta que é, se-
                                      Alta Idade Média, e que hoje todos os anos atrai mul-
                                                                                  gundo aquele grande historiador da arte portuguesa, uma
                                                                                  cidade soaresca, urbe que o artista bracarense encheu de
                                      tidões  a  Dublin,  na  Irlanda,  onde  está  guardado.  Este
                                                                                  encanto, desde o Arco da Porta Nova à Falperra, e de Ti-
                                      livro é uma das maiores preciosidades da arte cristã, e
                                      como não se sabe o nome do autor que o iluminou (ou
                                                                                  sua obra tão profunda, tão abrangente e tão revolucioná-
                                      autores), diz-se que foi um anjo, tal é perfeição estética
                                                                                  ria — e tão eletrizante!
                                      daqueles desenhos que chegam a atingir entrançados
                                      assombrosos.                                bães aos Congregados, só para aflorar muito ao de leve a
                                                                                  Quem ficará impassível diante do fascínio tão íntimo e tão
                                      Braga também tem um anjo desenhador, e, embora não   poderoso  da  capelinha  pequenina  da  Senhora  da  Apa-
                                      seja devidamente conhecido nem reconhecido pelos bra-  recida? A magia que ali se respira, com aquela luz divina
                                      carenses, sabemos bem o seu nome — André Soares —, e   descendo  da  lanterna  sobre  as  formas  voluptuosas  que
                                      até sabemos onde e quando nasceu: na rua do Souto, em   André Soares inventou, é capaz de converter um ateu! Há
                                      1720.  Nunca  casou,  o  seu  amor  era a  beleza  concebida   no mosteiro de Tibães talha dourada deformada de beleza.
                                      pela criatividade.                          Sim, deformada, porque nos causa um espanto paradoxal
                                                                                  a associação  da  excentricidade  lúbrica  — suscitada  pela
                                      Parece que na juventude se maravilhava com os livros que   pecaminosa exuberância — ao culto de Deus.
                                      lia na biblioteca do Paço dos Arcebispos e com as gravu-
                                      ras que lhe mostravam a arte barroca por toda a Europa.   Gilles Deleuze disse que o histérico faz o seu corpo falar,
                                      Façamos um pequeno esforço de imaginação: não é difícil   porque a espécie de dança que estimula em si mesmo é
                                      idealizar um rapaz solitário numa biblioteca, à luz celestial   linguagem  primeira.  Nós  percebemos  essa  linguagem.
                                      que entrava pelas janelas, sorrindo para as figuras e pen-  Reagimos. “Os linguistas estariam certos”, acrescenta De-
                                      sando: “Um dia também serei um artista”. Então, tocado   leuze, “se soubessem que a linguagem é sempre a dos cor-
                                      pelo espírito do sublime, decidiu-se a criar a sua própria   pos”. E quando ele diz corpos refere-se também aos que
                                      arte barroca, que mudaria Braga para sempre.  nascem da pedra. As obras que André Soares nos legou
                                                                                  formam um alfabeto — nem é preciso dizerem-nos que são
                                      É preciso que se diga que esta cidade não seria a mesma   dele para as reconhecermos.
                                      sem André Soares, e se é a Capital do Barroco, a ele deve
                                      este título.  Mesmo  assim,  quando  morreu,  aos  49 anos,   Entre nós, é ele o maestro do entusiasmo, o poeta das on-
                                      caiu no esquecimento, e foi preciso vir um investigador do   das luxuriantes, o que agitou mares de pedra, de madeira,
                                      estrangeiro, já no século XX, para o redescobrirmos: o pro-  de  bronze, de  iluminura,  de  azulejo,  de  ouro,  com  a sua
                                      fessor norte-americano Robert Smith, que lhe fez justiça e   pena.  Como  Caravaggio  convulsionou  a  pintura,  André
                                      o reabilitou. É bem verdade que se há um atributo comum   Soares  convulsionou  a  plástica  da  consistência,  fazendo
                                      a todos os grandes artistas é que eles podem ficar na som-  com  que flua  e se derrame  em nós, que a lemos  como
                                      bra durante algum tempo, mas a sua obra reclamará um   quando  vemos  o  rosto de  uma  pessoa  que  inesperada-
                                      dia o brilho a que tem direito.             mente corou de perturbação.
                                      Robert Smith, notável historiador de arte, foi tão importan-  Talvez seja essa a palavra, perturbação, pois é desta ma-
                                      te para Braga que a cidade deu o seu nome a uma gran-  neira que nos deslumbra este anjo que se chamou André
                                      de avenida (há quem pense que foi batizada em honra do   Soares.



               João Nuno Azambuja




























                                      Robert C. Smith, Historiador da Arte

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