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ENTREVISTA


               Enche-lhe as medidas esta coleção que agora sai
               à rua?
               É uma coleção breve e muito digna, da iniciativa da
               Editora ‘Opera Omnia’, patrocinada pela CCDRN
               (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento
               Regional do Norte) e apoiada por vários municípios,
               terras de geografia camiliana – Câmaras Municipais
               de Braga, de Vila do Conde, Viseu, Fafe, Cabeceiras
               de Basto, Ribeira de Pena, Ponte de Lima, Viana do
               Castelo, etc. Cada livro, pela história narrada, está
               assim vinculado a um determinado território, onde
               depois  fazemos  o  lançamento  público  de  cada
               obra. Pode despertar novos leitores e até promo-
               ver o turismo cultural e literário. Todos os livros têm
               uma generosa introdução explicativa, a pensar num
               público amplo e interessado. Há também a inten-
               ção de que o texto seja editado de forma rigorosa e
               atenta. Editar Camilo é também um serviço cultural,
               fomentando os hábitos de leitura e o conhecimento
               de um dos nossos grandes escritores de sempre.
               Qual foi o critério da escolha?
               Camilo é um autor muito ligado ao Norte. Não
               houve um critério cronológico, nem foi necessá-
               rio,  predominando o referido critério  geográfico.
               Posso dizer que é uma edição graficamente mui-
               to bonita, de capa dura, ilustrada, um belo objeto
               gráfico, com títulos bem diversificados: “No Bom
               Jesus do Monte”, “Mistérios de Fafe”, “Amor de
               Perdição”, “A Filha do Arcediago”, “Maria Moisés”,
               “Eusébio Macário”, “A Corja”, “A Doida do Candal”,
               “Os Brilhantes do Brasileiro”, etc. De modo particu-
               lar, deixe-me referir que ‘No Bom Jesus do Monte’
               é um livro singular, ancorado num local especial na
               vida e na obra de Camilo. O romancista visitou o
               Santuário, pela primeira vez, aos 10 anos. Ao longo
               da vida, peregrinou diversas vezes ao Bom Jesus,
               não apenas na busca de uma aproximação ao sa-
               grado, mas também movido por motivos de con-
               vívio social e de contacto com a natureza. Sobre as
               deslocações e permanência no local deixou Cami-
               lo vastas referências na sua obra.
               Esta coleção camiliana vai-se esgotar com o fi-
               nanciamento?
               Uma excelente notícia é que, algumas semanas
               após a saída do primeiro livro da coleção (“No Bom
               Jesus do Monte”), o editor já não tinha exemplares
               desse livro para distribuição por livrarias. E con-
               tinua a receber o interesse e disponibilidade de
               vários  municípios  para se editarem  outras  obras
               de Camilo, o que é outro sinal bem positivo. A me-
               lhor homenagem que podemos fazer a um escri-
               tor, quando comemoramos os 200 anos, é lê-lo.    do  tema  suicídio  em  vários  momentos.  Quer  na   é igual ou previsível. Diante da genialidade senti-
               Como professor e investigador de Camilo tenho   escrita dos romances, quer nas cartas, queixava-se   mo-nos tocados. Sinto surpresa e admiração a vá-
               a convicção íntima de que essa é uma das funções   muito dos problemas de saúde. O suicídio pare-  rios níveis – o uso ímpar da língua, a notável força
               mais  nobres: dar Camilo a ler. Sinto  que muitos   ce ser uma tragédia adivinhada. Aumentarem os   de imaginação no ato de contar histórias, o poder
               leitores podem ter vontade de ler Camilo pela pri-  problemas de saúde e sentir perder a visão... De-  de criar cenários e atmosferas, enfim, a poderosa
               meira vez e assim se tornarem cidadãos que pas-  pois de muitas tentativas frustradas para resolver   capacidade de representar Portugal, que tão bem
               sam a conhecer melhor a sua língua, o seu país e a                        conhecia, num vastíssimo e vivo arquivo docu-
               sua cultura. Não conhecer e admirar Camilo é ter   o problema, recebe um prestigiado oftalmologista   mental. Em Camilo, Portugal pode ver-se ao espe-
               uma bagagem cultural e literária muito reduzida. É   em Seide. O médico desenganou-o. Mal o médi-  lho, mesmo o Portugal de hoje. E isso é admirável,
               como ser inglês e não conhecer Shakespeare; ser   co descia as escadas, Camilo pegava no revólver e   seja num grande romance, seja em pequenas nar-
               espanhol sem ter lido Cervantes; ser francês e ig-  suicidava-se.         rativas (contos), que são verdadeiras obras-primas
               norar Balzac.                        Do que conhece de Camilo ainda consegue ga-  em qualquer país. Enfim, há sempre um Camilo
               Era expectável o fim da vida de Camilo?  nhar espanto?                    que nos surpreende, que nos deixa seduzidos. Afi-
                                                                                         nal, um grande escritor nunca perde o brilho. Italo
               Camilo teve uma vida muito intensa e com mo-  Sempre!  Mesmo  quando  releio  uma  obra  já  co-  Calvino dizia, justamente, que os grandes clássicos
               mentos particularmente dramáticos. Para quem   nhecida. Um grande escritor tem esse poder de   são aqueles escritores que nunca deixam de nos
               lê a obra com atenção, ele fala de si amiúde, até   surpresa, sobretudo para um leitor atento. Nunca   espantar.


               22                                              SETEMBRO · 2025                               #SIMatuaREVISTA
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