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ENTREVISTA







                                                    Leio Camilo desde
                                                    adolescente. Leio-o
                                                    desde que me
                                                    lembro (…) A ideia
                                                    central é que Camilo
                                                    pintou Portugal
                                                    como nenhum
                                                    outro escritor. Não
                                                    é recomendável
                                                    conhecer Portugal
                                                    sem conhecer
                                                    Camilo.”

















               Foi o primeiro a estudar na família?  Desse tempo, o que fica?            que li dele… terá sido, porventura, a “Maria Moisés”,
                                                                                         porque tinha um primo padre, professor no Semi-
               Não, havia outros. Por exemplo, a minha tia Cân-  Ficam sempre recordações, professores, uma quan-  nário de Braga, que me emprestava livros. Depois
               dida – irmã da minha mãe e minha madrinha – foi   tidade de boas imagens, de convívio, de colegas.   li “Amor de Perdição” e “A Queda dum Anjo”, que
               minha professora primária. Consequência: tinha   Fica, também, um conjunto de boas evocações do   também era obrigatório ler na escola. Seguiram-se
               trabalhos a dobrar (risos). Tinha os mesmos que   estudo, o prazer de descoberta, novos livros, novos   tantos e tantos outros títulos camilianos.
               dava aos outros alunos e ainda me sobrecarregava   autores. O prazer de passar horas e horas a estudar
               com mais alguns. Tenho dois irmãos: uma irmã que   em casa ou na biblioteca da Faculdade. Essa educa-  Percebeu logo ali que era um autor diferente?
               tem um belo restaurante em Ponte de Lima; e um   ção do método, de trabalho, é algo que se adquire
               irmão inspetor das Finanças. E é sempre um enor-  em jovem e fica para a vida. Como aprender a gerir o   Percebia que era um autor muito ligado a uma geo-
               me prazer o convívio familiar.       tempo. Não temos os pais connosco. Gerir, também,   grafia do Norte, enquanto um Eça de Queirós ou
                                                    o dinheiro, a alimentação, cuidar da roupa... Um es-  outros, nos falavam de um Portugal diferente, cen-
               O que encontrou em Braga no campo cultural?  paço de valores, uma escola modelar. A nossa rela-  trado na capital. Camilo falava, também, da cidade
               Não havia a riqueza cultural que hoje existe na ci-  ção com os professores era próxima, tratavam-nos   do Porto, mas era um autor muito enraizado e muito
                                                                                         conhecedor do Portugal do Norte. Confirmei como
               dade. A ‘agenda cultural’, passadas estas décadas,   pelo nome, falavam connosco fora das aulas. Ainda   leitor mais atento e adulto que tinha um conheci-
               é hoje bem mais rica. Um dos primeiros eventos   hoje é assim. Não temos propriamente multidões de   mento invulgar do Portugal onde ele viveu e onde
               que lembro, que nem é cultural, foi a realização   alunos e essa é uma vantagem para qualquer aluno   teve múltiplas experiências pessoais, numa biogra-
               da AGRO (Feira Agrícola) por volta de 1980, então   que se sente à vontade para falar com os professo-  fia acidentada. De tal maneira que há um grande
               bem politizada. Na AGRO, distribuía-se propagan-  res, tirar dúvidas, dialogar sobre leitura, desenvolver   escritor espanhol, Miguel de Unamuno – que foi
               da que vinha da URSS, com revistas que transmi-  a personalidade. Essa relação próxima e pessoal faz   reitor da Universidade de Salamanca – que andou a
               tiam imagens muito coloridas do desenvolvimento   muita diferença em relação a outros modelos de   viajar por Portugal no final do século XIX e início do
               da URSS como um modelo. É um pormenor que   ensino mais massificados.     século XX, escrevendo um livro com as memórias
               ainda tenho presente na memória.
                                                    Nessa altura, tinha ideia de seguir a vida acadé-  dessas viagens e, a determinada altura, diz que não
               Escolheu a então chamada Faculdade de Filoso-  mica?                      consegue viajar sem levar livros de Camilo debaixo
               fia. Alguma razão particular?                                             do braço. E faz um superlativo elogio a Camilo como
                                                    Não. Quando era aluno, pensava ser professor   o grande pintor da realidade social e anímica portu-
               Sim, escolhi porque tinha formação na minha área,   numa escola básica ou secundária. Mas quando   guesa. A ideia central é que Camilo retratou Portu-
               os cursos de Filosofia e de Humanidades. Entrei   acabei o curso, fiz um estágio numa escola secun-  gal como nenhum outro escritor. Não é recomen-
               na faculdade com colegas que já conhecia do se-  dária e só depois é que surgiu o convite. Fiquei   dável conhecer Portugal sem conhecer Camilo.
               cundário. Foram cinco anos com muitos bons pro-  contente e aceitei. Mas durante o curso não imagi-
               fessores. Muitos deles jesuítas, de espírito aberto e   nei sequer tal cenário. Tinha tanta admiração pelos   Faça-me o enquadramento do seu contributo no
               culto, com fortíssima componente humanística. Tal   professores que não me imaginava naquela função.  bicentenário de Camilo.
               como alguns milhares de alunos desta Faculdade,   Passou a ser um dos rostos maiores da comemo-  A ideia do bicentenário é particularmente oportuna.
               beneficiei  dessa  formação  sólida.  Muitas  dessas   ração do bicentenário de Camilo Castelo Branco.   Celebrar 200 anos de nascimento de Camilo e isso
               pessoas são hoje professores de Português nas es-  Quando foi ao encontro deste romancista?  passar despercebido seria impensável. É um grande
               colas do Norte do país, a par de outras profissões.                       e popular escritor português.
                                                    Leio Camilo desde adolescente. Leio-o desde que
                                                    me lembro. Não consigo identificar o primeiro livro

               20                                              SETEMBRO · 2025                               #SIMatuaREVISTA
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