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REPORTAGEM
CANTAR O FADO Em troca, deixava-me ouvir rádio. Foi através É de tenra idade que borbulha de amor pelas
dela que aprendi todos os fados da Amália, letras: “andava na escola e já escrevia poe-
Apesar de recusar ajoelhar-se a homens ves-
tidos de batina, este apuliense da cabeça aos Fernando Farinha e do Alfredo Marceneiro”. mas. Tinha uma sebenta e escrevia. A minha
pés, confessa que na solidão do mar abor- Sem se deter, continuou: “comecei a cantar. professora só mandava escrever palavras
dava Deus: “não acredito em muitas coisas, As pessoas gostavam de me ouvir até ser difíceis. Depois eu apagava e escrevia por
mas no mar pensava em Deus. Um pescador contratado pela família Pimenta Araújo – cima. Dizia que tinha a sebenta sempre suja
passa por muita coisa e tenta agarrar-se a contrabandista e comunista – onde recebia de apagar. A professora então disse para es-
ele”. No encalço, recorda a primeira vez: “Ti- cinco escudos por semana, 20 por mês. Era crever o que quisesse e não precisava fazer
nha 10 anos. Fui com o meu irmão. Só podia muito dinheiro. Foi nesse tempo que deixei deveres. Quando tinha a sebenta completa
de forma legal ir aos 14. Naquele tempo já de pedir. Comecei a comprar arroz, azeite e dizia-lhe e ela dava-me cinco tostões para
havia corrupção. Contornava-se as coisas. petróleo”. comprar outra sebenta. Escrevia poemas,
Lá consegui tirar a cédula marítima. Eu era Tudo corria sob rodas até que alguém ‘bu- histórias. Comecei com 10 anos. Estava na
muito atrevido. Não havia surf na altura. Os fou’: “a PIDE descobriu que eu ia cantar a quarta classe. Nunca parei. Cheguei a escre-
velhotes diziam-me para ter juízo, mas eu era casa de um comunista. Apanharam-me e ver muita coisa. Perdi milhares de poemas.
muito para a frente. Quando casei em 1962, deram-me uma sova. Proibiram-me de lá Escrevia e não ligava. Quando me reformei
fui ao mar, perdi-me com um sobrinho meu... voltar. Mas como eu nunca tive medo, re- é que comecei a dar outro valor. Fiz a minha
estava nevoeiro cerrado (tinha 25 anos)”. O gressei”. A coragem rendeu juros: “contei o casa com a minha mulher”.
coração da avó e da esposa só sossegaram que me aconteceu ao senhor Pimenta e ele
quando apareceram a altas horas da madru- aumentou-me para 10 escudos por semana
gada: “Havia a ronca no farol de Esposen- e deu-me umas calças de bombazine…até
de. Quando havia nevoeiro ouvia-se, mas já que prenderam o senhor Pimenta!”.
estava tão longe. Já não sabia onde estava.
Tinha de seguir a Sudeste. O meu irmão já LETRAS NA ALMA
andava a procurar-nos. Só apareci depois Por essa altura, a escola já estava enamora-
das duas da manhã. Já estava tudo a chorar. da na mente do nosso entrevistado: “com
Mas consegui desenrascar”. No dia seguinte o dinheiro que ganhei, comprei uma mesa,
voltou ao mar: “é como na estrada. Batemos três cadeiras e duas camas. Na escola, era
e temos de voltar”. o melhor aluno. Não dava erros. Fui fazer o
exame a Esposende e não se podia entrar
Não obstante, o desistir nunca teve espaço descalço. O dinheiro que tinha não chegava, Tive de me desenrascar
na vida de Carlos Moreira. Pelo contrário,
a ambição por melhor vida, fê-lo abraçar por isso fui pedir emprestados a uma senho- como podia. Era uma
vários desafios. O primeiro, bem singular: ra cujo filho tinha a minha idade. Fui a pé até
“andava sempre a pensar em como havia Esposende com os sapatos na mão. Quando miséria. Não tínhamos
de ganhar dinheiro. Fui para a casa de um lá cheguei, calcei-os. Fiz o exame e fiquei casa. Vivíamos numa
senhor trabalhar umas horas a sachar milho. aprovado com honra e distinção”.
cabana alugada. A
renda era paga, não em
dinheiro, mas com uma
serra de sargaço que
tinha de arranjar com os
restos que eram deixados
pelos sargaceiros.
Não tínhamos água,
luz, cadeiras e cama.
Comíamos no chão,
varríamos a areia com
vassouras de giesta e
púnhamos uma manta
no chão para comer.
Dormíamos em cima de
um monte de sargaços
com uma manta feita de
farrapos para nos cobrir.
#SIMatuaREVISTA AGOSTO · 2025 51