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REPORTAGEM REPORTAGEM
CARTEIRO DO MAR
No regresso a Portugal, o encontro com a
miséria: “quando casei há 53 anos, nem fri-
gorífico tinha. Os mais velhos, diziam-me
Fui ao Gerês que tem que era um bom pescador, mas o meu futu-
ro, a reforma, era andar de ‘saco às costas’.
leitugas comestíveis. E diziam para arranjar emprego. Então fui
Trouxe e plantei. Deixei para carteiro. Fazia as duas coisas. Foi o meu
irmão – também carteiro – que me arranjou
fazer semente e semeei. o emprego (1.400 escudos/mês). Comecei
antes da tropa e garanti o mesmo trabalho
Passado pouco tempo, quando regressei. Conciliava as duas coisas”.
deu uma ‘alface de O duplo ofício exigiu-lhe muita resiliência:
sonho’, nunca vista por “Ia entre as duas e as três da manhã para o
mar. Trabalhava 20 horas por dia. Mas feliz-
estas bandas. Tudo queria mente, hoje tenho duas casas e mais uma, a
comprar e eu vendia. do meu filho. Depois de vir do mar, a minha
mulher vendia o peixe. Depois andava 40
Uma vez, veio um francês Km de bicicleta. O giro era feito de motori-
perguntar onde arranjei zada e eles pagavam a gasolina, mas para
ganhar mais, ia de bicicleta”.
a semente, mas disse-lhe Do mar chegava pelas 07h00. Pegava na
que era segredo. Disse bicicleta para cumprir o horário de carteiro
(08h30-15h00). De seguida, ia para o cam-
que me dava três mil po plantar cebolas, batatas, cenouras. Fiz
contos. Assim aconteceu. tudo. Sei fazer tudo. No campo, sempre fiz
muitas experiências”.
Recebi o dinheiro e nunca ALFACE DE OURO
mais fiz a semente. Isto foi Homem de mil saberes, Carlos Moreira re-
em 1980”. lata como fez um bom ‘pé-de-meia’: “nunca
contei isto, mas vou-lhe contar. Fiz uma ex-
periência que me deu um bocado de dinhei-
ro. Fui ao Gerês que tem leitugas comestí-
veis. Trouxe e plantei. Deixei fazer semente
SAUDADES DE ANGOLA e semeei. Passado pouco tempo, deu uma
Pelo meio desta vida de pescador, a chamada ‘alface de sonho’, nunca vista por estas ban-
para prestar serviço militar em Angola, antiga das. Tudo queria comprar e eu vendia. Uma
colónia portuguesa: “gostei de lá estar. Feliz- vez, veio um francês perguntar onde arranjei
mente nunca passei fome. Vi mortos, nunca a semente, mas disse-lhe que era segredo.
matei, nem vi matar. Fui cozinheiro. O avião Disse que me dava três mil contos. Assim
levava peixe de 15 em 15 dias. Metade era rou- aconteceu. Recebi o dinheiro e nunca mais
bado pelos mestres antes de chegar ao quar- fiz a semente. Isto foi em 1980”.
tel para vender aos pretos. De resto, Angola
era um paraíso. Já havia Coca-Cola. As mu- CANCROS DERROTADOS
lheres andavam bem vestidas. Viva-se melhor Em 1998, a mulher da sua vida contrai um
em Angola do que se vive aqui agora. Tinha cancro na mama. Um ano depois, retira os
café, bananas, laranjas. Quando estava de fé- ovários e o útero. Vinte anos volvidos, novo
rias, corri África. Não faltava nada. Os pretos
não trabalhavam. África tinha tudo, eles é que cancro na mama. Tempo duro enfrentado de
são malandros. Aquela terra dá tudo. Sem fa- frente: “ficou sem cabelo, mas eu não que-
zer nada. Bastava lançar para a terra”. A oferta ria vê-la assim e comprei-lhe uma peruca.
era tão gorda que serviu para tirar a carta de Agora está bem. Não nos falta nada”. Porém,
condução profissional: “Tinha um pipo de 100 esta tormenta obrigou-o a deixar o mar: “sem
litros de vinho. No garrafão, metia-lhe água. o apoio dela, não fazia sentido continuar. Se
Vendia-o a cinco escudos. Com esse dinheiro tenho saudades? Tenho, porque tinha o ví-
tirei a carta. Sempre me desenrasquei. Estive cio do mar. No entanto, vou ao mar todos os
25 meses em Angola. Regressei em fevereiro dias, seja Verão seja Inverno. Gosto de ir ao
de 1971. Tenho saudades. Nunca mais voltei. mar. Tenho respeito, mas também o conhe-
Estou em paz, até podia ir lá, mas agora não. ço. Nado até ao pescoço e volto para terra.
Angola ficou no meu coração”. Tenho 78 anos e não me dói nada”.
52 AGOSTO · 2025 #SIMatuaREVISTA