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REPORTAGEM REPORTAGEM
PESCADOR DE PALAVRAS
CARLOS MOREIRA – HOMEM DO MAR
A caminhar para os 80 anos, bem cedo: “Meu menino eu não irei ver, mas los sargaceiros. Não tínhamos água, luz, ca-
TEXTO: Ricardo Moura
Carlos Moreira tem o mar
quando chegar o ano 2000, vais ver estradas
deiras e cama. Comíamos no chão, varríamos
da Apúlia na palma da mão.
por todo o lado, carros e muitos aviões no ar, e
a areia com vassouras de giesta e púnhamos
Nela vê ondas e tempesta-
des, nevoeiro e sol limpo.
bra-te, o fim da humanidade está próximo”.
em cima de um monte de sargaços com uma
Um homem que lembra, por entre a muita máquinas que tu nem imaginas ver. Mas lem- uma manta no chão para comer. Dormíamos
manta feita de farrapos para nos cobrir. Não
miséria da adolescência, um tempo com Fala da avó como se fala do céu. Afaga-a com havia lençóis. O banho era no mar”. Os dias
pássaros e onde a liberdade era estendida ternura na lembrança que não lhe sai das en- medravam à rédea solta: “era a ‘botar’ pinhas
no espelho de água que encontrava noite tranhas. O mesmo sucede com a mãe: “éra- abaixo dos pinheiros. Os lavradores davam-
dentro. Criado pela avó materna, chutava a mos três irmãos e o mais novo morreu. Ela -me uma malga de feijões ou uma espiga de
dor, primeiro na cantoria, depois nas letras. nunca recuperou. Fez-me muita falta. Foi in- milho. Dinheiro…nada! Debulhava as espigas
Foi carteiro e hoje não há ninguém que fi- ternada no Hospital Conde Ferreira, no Porto, até conseguir arranjar uma rasa de milho,
que indiferente ao que encontra no exterior e de lá foi transferida para a Casa da Saúde de mais ou menos 15 kg”.
da casa onde habita. Um conjunto de odes Bom Jesus, em Braga, onde permaneceu 50
ao mar e à mulher com quem casou há mais anos, até morrer em 2005”. O que faltava em material, sobrava em valo-
de meio século. PEDIR NA RUA res: “fiz-me à vida com o que me ensinou a
minha avó. Ia à igreja com ela e ia ao confesso.
Sem ‘pais’, foi pedir para a rua: “tive de me Obrigavam a ir na Páscoa”. Todavia, a relação
desenrascar como podia. Era uma miséria. com os padres cedo azedou: “uma vez o pa-
Nunca teve pai. É assim que pensa. A mãe dre perguntou-me se fazia pecados com o
enlouqueceu quando tinha cinco anos. Um Não tínhamos casa. Vivíamos numa cabana corpo com homens ou mulheres. Nunca mais
lar de cacos. Alguns foram apanhados pela alugada. A renda era paga, não em dinheiro, me confessei”.
avó que, sem saber ler e escrever, o alertou mas com uma serra de sargaço que tinha de
arranjar com os restos que eram deixados pe-
50 AGOSTO · 2025 #SIMatuaREVISTA