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CRÓNICA
A MAJESTADE
DA RAÇA HUMANA
Q uando o imperador Caracala concedeu cidadania romana sagrado entre os sócios, que se convertem numa espécie
a todos os habitantes livres do Império Romano (Édito de
de povo desligado do resto do mundo — que adepto do S. C.
Braga pisará a insígnia do seu clube?
212 d.C.) tomou uma medida revolucionária: inaugurou a
gestão comum de indivíduos diversos, inserindo-os num
Há o hábito apressado de dizer que o povo português é hete-
só povo. Ele afirmou: “Este édito aumentará a majestade
rogéneo porque provém de muitas ascendências diferentes.
do povo romano”. Note-se esta formidável subtileza: Ca-
Mas que povo não é assim? Então e a França, foco de todo
racala disse «povo» quando se referia a uma multidão de
povos. De cidade reduzida ao Lácio, Roma tornou-se urbe
tugal à imigração afirmando que os imigrantes fizeram os
universal. Não há dúvida de que constituiu uma decisão
portugueses, assim como não resulta dizer (como juraram os
precursora, ainda embrionária, do que surgiria muito mais o Ocidente? Não resulta querer justificar a abertura de Por-
tarde: a igualdade de todos perante a lei. Foi um gesto nazis) que o povo alemão é puro e provém da pura raça aria-
inteligentíssimo de quem percebia que o mundo estava na. Ambas as intenções são facilmente rebatidas: a primeira,
a mudar, uma vez que era cada vez mais difícil separar os argumentando que se os portugueses têm ascendências di-
habitantes por nacionalidades, e, consequentemente, por ferentes não deixaram de constituir dentro de fronteiras bem
práticas de gestão. A expansão do cristianismo (comu- definidas um grupo perfeitamente distinto dos outros, com
nhão ecuménica dos homens) era um dos motores destes costumes próprios, língua única, símbolos únicos, tradições,
novos tempos. Buscava-se uma uniformização que supe- costumes, etc.; a segunda, argumentando que dos arianos
rasse as cisões do passado. Não será exagerado escrever aos alemães muita água correu debaixo da ponte, e que a
que Caracala deu o primeiro passo da globalização. génese dos alemães foi contaminada ao longo dos séculos
por variadíssimos povos, como celtas, italianos, gregos, esla-
Os Estados modernos seguiram este rumo, congregando as vos, hunos, persas e outros — e já omito as populações que
gentes de inúmeras cidades e peculiaridades numa nação, se mesclaram para fazer os arianos. Se recuarmos ainda mais
cujos indivíduos se mantêm unidos sob a lei, mas essencial- no tempo, verificamos que os homo sapiens se cruzaram na
mente sob representações, como a bandeira. Se a bandeira Europa com os neandertais, e que ainda hoje há alemães (e
tem origem no estandarte militar, que sinalizava ao longe a portugueses) com genes neandertais, raça com origem no
que regimento pertencia um soldado, o qual devia seguir o Oriente que se extinguiu há nada menos que trinta mil anos!
emblema no decurso da batalha, em perfeita ordem, hoje, Apetece lembrar aqui o caso anedótico da pequena Hessy
esse pano colorido guia inconscientemente a submissão de Taft, que em 1935, com seis meses de vida, foi eleita por Goe-
um individuo ao Estado. A evolução construiu nestes últimos bbels, ministro da propaganda nazi, o mais bonito bebé aria-
tempos organizações ainda mais vastas, como a União Euro- no, quando a menina, afinal, era… judia.
peia, que é na prática um superestado com o centro burocrá-
tico em Bruxelas, essa Roma moderna que nos transforma Estes ensaios de estandardização excedem em muito o Édi-
em cidadãos unidos de Lisboa a Helsínquia (alude-se até to de Caracala, que se a majestade da raça humana segue o
com ligeireza a um «povo europeu»). Daí que «povo» seja um curso irreversível da igualdade, tal não significa necessaria-
conceito muito mais artificial e pragmático do que natural, e mente vantagem, pois o nivelamento pode cair na grotesca
isto vê-se na desmesurada proliferação de bandeiras. Há-as padronização do terrível Leito de Procustes. A certeza é que
para tudo, qualquer clube regional tem uma, associações, há um preço elevado a pagar: a extinção das diferenças, que
fundações, empresas, etc., porque elas geram um vínculo são o sal desta vida.
João Nuno Azambuja
90 JULHO · 2025 #SIMatuaREVISTA