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CRÓNICA
BRAGA ROMANA
R ealizou-se em maio uma nova edição da Braga Romana, cando-a não como acaso ou motivo da crise de Roma, mas
celebrando o passado romano da nossa cidade, que vi-
como um plano ordenado pela Providência. Se esta sua
veu mais de quatro séculos sob o domínio da civilização
visão é unilateral, não deixa de estar integrada na conjun-
oriunda da Itália, ao longo dos quais foi Bracara Augus-
tura da sua época. Investigador brilhante, o padre António
ta lentamente penetrando no cristianismo, inserida na
Vieira chama-lhe “diligentíssimo descobridor de todas as
tradição de Roma até ao advento dos povos bárbaros,
antiguidades”, e Dante, na Divina Comédia, coloca-o no
aqui cristianizados, nomeadamente por São Martinho
de Dume. Sabemos que esses tempos da instalação
Este homem assistiu às invasões bárbaras, e delas teve de
da Igreja foram muito conturbados, devido à difusão
fugir, partindo para o Norte de África ainda jovem, onde
de movimentos considerados heréticos pela doutrina Paraíso, entre os notáveis do mundo (canto X).
oficial, como é o caso do Priscilianismo, o mais famoso privou com Santo Agostinho, que o admirava. Agostinho
e o que mais adeptos atraiu, antes de ser combatido e escreveu numa carta a Evódio: “O presbítero Orósio, jovem
erradicado — não sem deixar influências profundíssimas, de grande virtude e apaixonado pelo estudo, veio até nós
tanto que é o Priscilianismo um dos responsáveis do for- dos confins da Hispânia, na costa do oceano», e a partir da-
te sentimento religioso no Norte de Portugal. qui incumbiu-o de tarefas que só delegaria em quem con-
fiasse totalmente, como remetê-lo a São Jerónimo, que es-
Pois um dos focos principais da feira romana situa-se no tava em Jerusalém, para resolver dúvidas sobre a Sagrada
largo Paulo Orósio, onde se dedicou uma estátua ao fun- Escritura.
dador da cidade, o famigerado imperador Augusto. Mas
o homem que dá nome ao largo, e que nasceu em Braga É importante que se diga que Bracara Augusta viveu a
ainda no período romano, continua relegado na penum- maior parte do seu tempo sob a influência do cristianismo,
bra. Sim, por extraordinário que possa parecer, poucos em a par das divindades romanas, que foram sendo margina-
Braga sabem quem foi este mestre conhecido em toda a lizadas até à extinção. O bispo mais antigo documentado,
Europa e estudado ao longo dos séculos pelos mais eru- Paterno, foi contemporâneo de Orósio, nesta que era ain-
ditos dos investigadores. Infelizmente contribuímos para da uma cidade plenamente romana, mas em simultâneo
esta ignorância, porque Orósio não é divulgado nem na marcadamente cristã, pois se já estava formada uma dio-
Braga Romana nem no largo com o seu nome (a não ser cese nesta altura é porque a religião de Cristo se instalara
na velha placa). Aceita-se que na Cidade dos Arcebispos profundamente na região muito antes, até porque o papa
se evoque o imperador fundante, mas seria mais plausível Sirício alude a um mais que provável bispo de Braga antes
que no largo Paulo Orósio se evocasse o bracarense que de Orósio nascer.
escreveu o primeiro tratado de história universal de um
autor cristão, a História contra os pagãos, na qual Orósio Outro facto interessantíssimo é que as relíquias do primei-
narra a história do mundo até ao seu tempo (início do sécu- ro mártir cristão — Santo Estêvão, o protomártir — foram
lo V), dividindo-a em quatro grandes períodos, e que foi o confiadas a Orósio por um outro bracarense, Avito, que re-
mais importante dos manuais de história universal de toda sidia em Jerusalém, e que as tinha na sua posse. Orósio quis
a Idade Média, sendo inclusive traduzido pelos árabes. Es- trazê-las para Braga. Não o conseguiu, porque as guerras
creveu igualmente outros tratados defendendo a religião dos bárbaros devastavam a sua terra. Regressou então ao
cristã, fundamentando-a contra os seus inimigos e justifi- Norte de África, onde veio a morrer.
João Nuno Azambuja
88 JUNHO · 2025 #SIMatuaREVISTA