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REPORTAGEM
“LIBERDADE DO RICO”
Houve um tempo que a editora EMI quis
profissionalizar os ‘Mão Morta’. A reunião
aconteceu, mas a resposta foi perentória:
“houve muitas perguntas e, no fim, pergunta-
ram se nós estávamos dispostos a deixarmos
as nossas profissões e dedicarmo-nos apenas
à música. Eu disse que não. Foi uma decisão
de todos porque queríamos trabalhar a músi-
ca como superlativo, como um gosto para não
estarmos dependentes. É uma questão de
verdadeira liberdade criativa. Só mais tarde,
com a ‘BMG’, após o êxito da música ‘Buda-
peste’, é que fizemos um contrato. Queriam
fazer um contrato de longa duração, mas nós
só quisemos para um disco. Depois logo se
via. Não queríamos ficar ‘presos’ em nada”.
Até porque, confessa, “se fizéssemos o que
a maioria faz, talvez criasse discordâncias no
grupo, com ideias diferentes dos vários ele-
mentos. Provavelmente, iria interferir com a
estrutura do grupo. Assim, fazemos ao ritmo
que nos apetecer. É a liberdade criativa do
rico. Podemos fazer o que quisermos, inclusi-
ve coisas que não são nada rentáveis. Esta op-
ção que tivemos no início, e o próprio termo
‘Mão Morta’ designa isso, é saber que, desde BRAGA SEM OUTRAS REFERÊNCIAS ameaças que existem pelo Mundo. Queremos
a primeira hora, nós nunca seremos profissio- preservar o nosso futuro. A temática do ’25 de
nais, nós nunca dependeremos da música. Foi Interrogado do porquê de ainda não ter sur- Abril’ permitiu-nos fazer coisas novas, buscar
a forma que encontrámos de sermos úteis a gido em Braga uma banda com o impacto dos referências à música da intervenção da época,
nós próprios”. ‘Mão Morta’ passados 40 anos, o líder do gru- nomeadamente ao José Mário Branco, Zeca
po, respira fundo, e comenta: “é uma boa per- Afonso, trabalhando diferentes vozes, algo que
gunta…já apareceram algumas bandas inte- não costumávamos fazer. Houve uma vontade
ressantes. Houve uma, por exemplo, que nem de explorar novos caminhos. O disco está a ser
sei se já acabou, os ‘Peixe Avião’, que tinha extraordinário. Tem ultrapassado as nossas ex-
todas as condições para ser uma grande ban-
da a nível nacional. Não sei o que aconteceu. petativas. Foi muito pensado, tal como fazemos
nos outros discos que produzimos”.
Chegaram a um certo patamar e não ultrapas-
saram essa fase. Não sei porquê. Porventura, o “ESTAMOS BEM”
Mundo está diferente. De resto, em Portugal,
Não nos espanta esta nossa há coisas muito interessantes, com uma gran- A origem do grupo arrancou com três elemen-
longevidade. Não há uma voz de incorporação de eletrónica. O que é mais tos. Hoje é composto por seis: Adolfo Luxúria
Canibal, Miguel Pedro, António Rafael, Vasco
de comando (…) gostamos badalado, é o menos interessante. Parece que Vaz, Ruca Lacerda e Rui Leal. Uma viagem que
soa tudo ao mesmo. É tudo comprimido. As
do que estamos a fazer e não pessoas estão sem tempo. Andam atrás não sei continua a palmilhar caminho: “estamos bem.
estamos dependentes de de quê, alienadas nos seus écrans.” Não ensaiamos muito. Fazemos ensaio quando
é necessário, como foi exemplo o concerto que
contratos da música. ‘VIVA LA MUERTE!’ demos no ‘Theatro Circo’ de Braga. O ‘ao vivo’
Temos liberdade criativa (…) Os ‘Mão Morta’ estão na estrada a comemorar é uma travessia em cima do arame onde pode-
somos relevantes porque não 40 anos de vida que coincidem com o meio sé- mos cair a qualquer altura. A adrenalina de su-
nos repetimos. O dinheiro culo da ‘revolução dos cravos’. Neste contexto, bir ao palco não diminuiu nem aumentou com
o passar do tempo.” Tudo isto sob o chapéu de
nunca foi importante. o ‘Theatro Circo’ de Braga lançou o desafio para uma “audiência minoritária”, fiel e que ocupa,
conceberem uma encenação que fizesse jus à
efeméride. É desta forma que nasce o ‘Viva la por norma, “a primeira (intelectuais) e a última
Muerte!’ (espírito dos fascismos) espetáculo so- fila (gandulos) de uma sala de aula”. A reboque,
Chegados aqui quisemos saber se há uma bre o fascismo e o perigo do seu regresso, não estão os festivais onde as gerações mais novas
fórmula que explique a resistência de uma só em Portugal, mas em todas as democracias “descobrem o nosso som e ficam”.
banda controversa, singular, que resiste há liberais. A par, uma apresentação, sob a forma RECONHECIMENTO
quase meio século. A resposta não podia ser de conferência ou conversa, onde diversos es-
mais desarmante: “não nos espanta, até nos pecialistas e académicos tratassem o conceito Por fim, quisemos saber se o grupo – com per-
explica. Não temos questões. Não há chatices. de fascismo de forma mais rigorosa e esclare- to de 20 álbuns editados – sente o reconheci-
Temos um gosto comum de fazermos coisas cedora, a completar a abordagem artística do mento devido de uma cidade cada vez mais lar-
diferentes, sem haver repetição. Não há uma espetáculo. Adolfo Luxúria Canibal faz o retrato ga, jovem e com uma dinâmica multifacetada. O
voz de comando. Como qualquer casamento, desta aposta que combate, simbolicamente, a vocalista dos ‘Mão Morta’ é taxativo na resposta:
há atritos, mas seguimos. Gostamos do que es- pulsão de morte que paira Mundo fora: “o ál- “temos o reconhecimento que sempre tivemos.
tamos a fazer e não estamos dependentes de bum aparece a dizer que se existisse fascismo, Fomos e continuamos a ser alternativos. É uma
contratos da música. Temos liberdade criativa. não estaríamos aqui. É mais uma necessidade franja minoritária que nos segue sempre…”
Ainda hoje gostamos de aprender e fazer coi- que nós temos de preservar o meio onde nos Quanto a Berlim, Adolfo Luxúria Canibal se-
sas diferentes. Para nós, somos relevantes por- movemos. Com o fascismo, não há criatividade, greda que irá brevemente visitar a capital da
que nunca repetimos. Não me arrependo de não há espaço para existirmos. É uma espécie Alemanha. A banda fica por cá. Parte sozinho
nada. O dinheiro nunca foi importante.” de necessidade de respirar, de esconjurar essas para férias com bilhete de ia e volta.
#SIMatuaREVISTA ABRIL · 2025 49