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REPORTAGEM REPORTAGEM
Era um lado interpretativo. Por outro lado, ha-
via muita tensão no público. O recinto tinha a
lotação mais do que esgotada. A agitação era
muita e pensei que o sangue pudesse acalmar
a tensão que existia. O lado acidental aconte-
ceu porque a faca era nova, muito afiada, e eu
não senti o que estava a fazer. Só quando senti
algo na perna é que vi o que tinha feito. Aí as-
sustei-me. Os músicos a virarem costas, qua-
se a desmaiar. No público houve pessoas que
desmaiaram. Tive que fazer garrotes sucessi-
vos, porque aquilo não parava. Fiz o concerto
até ao fim. Depois fui para o Hospital Santa
Maria e aí desmaiei. Foi uma lição. Nunca mais
usei facas. Durante anos o joelho passou a não
aguentar o meu peso”.
A agitação era muita e pensei
“CHEGOU AR FRESCO” rou. Passaram a existir equipas de profissionais que o sangue pudesse acalmar
de luzes e de som que a proliferação dos con- a tensão que existia (…) não
No mesmo tom, o entrevistado ao recordar certos veio permitir.
1984 lembra que o ‘boom’ já tinha sucedido, era a primeira vez que usava
com exemplos interessantes como os ‘GNR’. Tudo parecia rolar: “surgimos num momen- facas e canivetes onde fazia
No entanto, lembra que anos antes houve to muito particular. De grande liberdade, não pequenos arranhões na
uma espécie de “mau cheiro” do rock. Quando só em Portugal como no estrangeiro. Os anos
surgem os ‘Mão Morta’, a atmosfera era mais 80 foram muito importantes, bem diferente do pele (…) músicos a virarem
respirável a ponto de ficarem inseridos na en- que acontecia na segunda metade dos anos costas, quase a desmaiar.
tão denominada segunda geração da música 70”, esclarece o músico. No público houve pessoas
moderna portuguesa. Adolfo relembra que o É nesta envolvência que surge o apuramen-
objetivo era “distanciar-se do rock português que desmaiaram. Tive que
que havia”. A aposta foi bem-sucedida porque to para o III Concurso de Música Moderna do fazer garrotes sucessivos,
“chegou um ar fresco e foi nesse ambiente que ‘Rock Rendez-Vous’ onde acabariam por ob- porque aquilo não parava.
nos inserimos”. ter o Prémio de Originalidade, que era o mais
apetecível e prestigiante galardão em disputa Fiz o concerto até ao fim (…)
depois da sua entrega no ano anterior aos ‘Pop Durante anos o joelho passou a
Dell’Arte’. não aguentar o meu peso”.
Em setembro de 1986, Carlos Fortes entra
para o grupo, na 2.ª guitarra, e em outubro des-
se ano os ‘Mão Morta’ têm a sua estreia inter-
nacional com um concerto em Vigo (Espanha), Com entradas e saídas, o coração da banda
no ‘El Kremlin’, integrados na mostra ‘Rock Vi- continua a bater com um som “muito próprio”,
Quando fomos tocar, pela go-Oporto 86’. sublinha Adolfo Luxúria Canibal: “desde logo
primeira vez, na televisão De vento em popa e com o público a exigir, pela minha voz que identificam com facilidade
(1987), no programa ‘Fisga’ da lançam em julho de 1988 o primeiro álbum (…) reconhecem o som do grupo. É verdade
que, ao longo da evolução da banda, houve di-
RTP, a malta de Braga mais homónimo. Um ano brutal em aparições com ferentes compositores, mas o som final é muito
destaque para a primeira parte dos britânicos
alternativa parou literalmente ‘Wire’, no Pavilhão Infante de Sagres, no Por- reconhecível”.
para nos ver. to, e a fechar o ano fazem as duas primeiras Esta matriz – muito à custa do ‘Prémio de Ori-
partes, no Pavilhão Carlos Lopes em Lisboa e ginalidade’ – foi pulverizada pelos jornais da
no Teatro Rivoli no Porto, do australiano ‘Nick época especializados em música como o ‘Blitz’
A entrada de Portugal na Comunidade Eco- Cave’ com os seus ‘Bad Seeds’. e o ‘Se7e’ bem como os generalistas que dedi-
nómica Europeia (CEE) trouxe novas opor- FACA NO ROCK RENDEZ-VOUS cavam secções e páginas à performance musi-
tunidades e melhor acesso aos instrumentos cal. Todavia, esta ‘luz’ só acontece em Lisboa.
musicais, esclarece o líder da banda: “torna- 1989 é um marco na carreira da banda mi-
ram-se mais baratos. Passou mais gente a fazer nhota e pelas piores razões. Acontece no clube Um senão que impedia atuações em palcos
música. A tecnologia de gravação e dos pró- lisboeta ‘Rock Rendez-Vous’. Um episódio bi- solicitados por partidos políticos, câmaras ou
prios instrumentos trouxeram uma maior de- zarro que podia ter tido consequências fatais: festas de cidades. Ao invés, o grupo enveredou
mocratização à música. Houve um alargar do “foi um acontecimento com muito sangue à por poucos concertos – o recorde anual nun-
circuito dos concertos. Recuperaram-se os mistura. Uma coisa parcialmente pensada e ca atingiu os 30 – que cedo foram carimbados
velhos teatros que passaram a ser uma alter- acidental ao mesmo tempo. Pensada porque como momentos de culto. A exemplificar, só
nativa aos velhos pavilhões gimnodesportivos, não era a primeira vez que usava facas e cani- muito recentemente (2017) é que subiram a
péssimos em acústica. O som ao vivo melho- vetes onde fazia pequenos arranhões na pele. palcos como a ‘Festa do Avante’.
48 ABRIL · 2025 #SIMatuaREVISTA