Page 48 - SIM 305
P. 48

REPORTAGEM                                                                                                                              REPORTAGEM


                                                                                         Era um lado interpretativo. Por outro lado, ha-
                                                                                         via muita tensão no público. O recinto tinha a
                                                                                         lotação mais do que esgotada. A agitação era
                                                                                         muita e pensei que o sangue pudesse acalmar
                                                                                         a tensão que existia. O lado acidental aconte-
                                                                                         ceu porque a faca era nova, muito afiada, e eu
                                                                                         não senti o que estava a fazer. Só quando senti
                                                                                         algo na perna é que vi o que tinha feito. Aí as-
                                                                                         sustei-me. Os músicos a virarem costas, qua-
                                                                                         se a desmaiar. No público houve pessoas que
                                                                                         desmaiaram. Tive que fazer garrotes  sucessi-
                                                                                         vos, porque aquilo não parava. Fiz o concerto
                                                                                         até ao fim. Depois fui para o Hospital Santa
                                                                                         Maria e aí desmaiei. Foi uma lição. Nunca mais
                                                                                         usei facas. Durante anos o joelho passou a não
                                                                                         aguentar o meu peso”.










                                                                                         A agitação era muita e pensei
                “CHEGOU AR FRESCO”                  rou. Passaram a existir equipas de profissionais   que o sangue pudesse acalmar
                                                    de luzes e de som que a proliferação dos con-  a tensão que existia (…) não
                No mesmo tom, o entrevistado ao recordar   certos veio permitir.
               1984 lembra que o ‘boom’ já tinha sucedido,                               era a primeira vez que usava
               com exemplos  interessantes  como os  ‘GNR’.   Tudo parecia rolar: “surgimos num momen-  facas e canivetes onde fazia
               No entanto, lembra que anos antes houve   to muito particular. De grande liberdade, não   pequenos arranhões na
               uma espécie de “mau cheiro” do rock. Quando   só em Portugal como no estrangeiro. Os anos
               surgem os ‘Mão Morta’, a atmosfera era mais   80 foram muito importantes, bem diferente do   pele (…) músicos a virarem
               respirável a ponto de ficarem inseridos na en-  que acontecia na segunda metade dos anos   costas, quase a desmaiar.
               tão denominada segunda geração da música   70”, esclarece o músico.       No público houve pessoas
               moderna portuguesa. Adolfo relembra que o   É nesta envolvência que surge o apuramen-
               objetivo era “distanciar-se do rock português                             que desmaiaram. Tive que
               que havia”. A aposta foi bem-sucedida porque   to para o III Concurso de Música Moderna do   fazer garrotes sucessivos,
               “chegou um ar fresco e foi nesse ambiente que   ‘Rock Rendez-Vous’ onde acabariam por ob-  porque aquilo não parava.
               nos inserimos”.                      ter o Prémio de Originalidade, que era o mais
                                                    apetecível e prestigiante galardão em disputa   Fiz o concerto até ao fim (…)
                                                    depois da sua entrega no ano anterior aos ‘Pop   Durante anos o joelho passou a
                                                    Dell’Arte’.                          não aguentar o meu peso”.
                                                     Em setembro de 1986, Carlos Fortes entra
                                                    para o grupo, na 2.ª guitarra, e em outubro des-
                                                    se ano os ‘Mão Morta’ têm a sua estreia inter-
                                                    nacional com um concerto em Vigo (Espanha),   Com entradas e saídas, o coração da banda
                                                    no ‘El Kremlin’, integrados na mostra ‘Rock Vi-  continua a bater com um som “muito próprio”,
               Quando fomos tocar, pela             go-Oporto 86’.                       sublinha Adolfo Luxúria Canibal: “desde logo
               primeira vez, na televisão            De vento em popa e com o público a exigir,   pela minha voz que identificam com facilidade
               (1987), no programa ‘Fisga’ da       lançam em julho de 1988 o primeiro álbum   (…) reconhecem o som do grupo. É verdade
                                                                                         que, ao longo da evolução da banda, houve di-
               RTP, a malta de Braga mais           homónimo. Um ano brutal em aparições com   ferentes compositores, mas o som final é muito
                                                    destaque para a primeira parte dos britânicos
               alternativa parou literalmente       ‘Wire’, no Pavilhão Infante de Sagres, no Por-  reconhecível”.
               para nos ver.                        to, e a fechar o ano fazem as  duas  primeiras   Esta matriz – muito à custa do ‘Prémio de Ori-
                                                    partes, no Pavilhão Carlos Lopes em Lisboa e   ginalidade’ – foi pulverizada pelos jornais da
                                                    no Teatro Rivoli no Porto, do australiano ‘Nick   época especializados em música como o ‘Blitz’
                A entrada de Portugal na Comunidade Eco-  Cave’ com os seus ‘Bad Seeds’.  e o ‘Se7e’ bem como os generalistas que dedi-
               nómica Europeia (CEE) trouxe novas  opor-  FACA NO ROCK RENDEZ-VOUS       cavam secções e páginas à performance musi-
               tunidades e melhor acesso aos instrumentos                                cal. Todavia, esta ‘luz’ só acontece em Lisboa.
               musicais,  esclarece o líder da banda: “torna-  1989 é um marco na carreira da banda mi-
               ram-se mais baratos. Passou mais gente a fazer   nhota e pelas piores razões. Acontece no clube   Um senão que impedia atuações em palcos
               música. A tecnologia de gravação e dos pró-  lisboeta ‘Rock Rendez-Vous’. Um episódio bi-  solicitados por partidos políticos, câmaras ou
               prios instrumentos trouxeram uma maior de-  zarro que podia ter tido consequências fatais:   festas de cidades. Ao invés, o grupo enveredou
               mocratização à música. Houve um alargar do   “foi um acontecimento com muito sangue à   por poucos concertos – o recorde anual nun-
               circuito  dos  concertos.  Recuperaram-se  os   mistura. Uma coisa parcialmente pensada e   ca atingiu os 30 – que cedo foram carimbados
               velhos teatros que passaram a ser uma alter-  acidental ao mesmo tempo. Pensada porque   como  momentos  de  culto.  A  exemplificar,  só
               nativa aos velhos pavilhões gimnodesportivos,   não era a primeira vez que usava facas e cani-  muito recentemente (2017) é que subiram a
               péssimos em acústica. O som ao vivo melho-  vetes onde fazia pequenos arranhões na pele.   palcos como a ‘Festa do Avante’.

               48                                                ABRIL · 2025                                #SIMatuaREVISTA
   43   44   45   46   47   48   49   50   51   52   53