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REPORTAGEM
“O fenómeno do pai que não reconhece os próprios filhos é verdadei- “Algo tem de mudar. Deve mudar… porque há sinais de que o caminho
ramente terrível e ainda o é mais quando assistimos, com os nossos que estamos a seguir é errado quando a única solução que as famílias
próprios olhos, a este apagar de memória e de vínculos”, frisou, lem- encontram é a institucionalização dos familiares idosos. Se as moder-
brando, a reboque, a história da escritora Agustina Bessa-Luís, célebre nas sociedades exigem a um pai e a uma mãe que tenham dois ou três
por ser dona de “uma memória absolutamente fantástica, que seria trabalhos para poder corresponder às necessidades das suas famílias,
quase impensável que fosse um dia perder a memória…. É angustian- a começar por conseguir ter rendimentos suficientes para suportar um
te”. crédito de habitação, etc., o facto é que este alargamento do tempo
útil de trabalho tem levado à desvinculação dos laços familiares e afe-
Não esquece, nem nunca esquecerá jamais, aquele “olhar vazio” que o
pai adquiriu nos seus últimos anos de vida. “Foi muito difícil, para mim tivos, conduzindo os respetivos filhos e pais (avós) à institucionalização
e, sobretudo para a minha mãe e irmãs que lhe prestavam os cuidados e isso é algo que nos deve, realmente, preocupar”, considera a docente
que necessitava, por estarem mais próximas, sentir o esmagamento da e escritora.
impotência e observar de perto a forma como o meu pai ia sendo afe- “Antigamente, na maior parte das famílias, sobretudo as mais tradicio-
tado progressivamente pela doença… Uma perda de humanidade em nais ou dos meios rurais, o pai trabalhava e a mãe estava em casa e era
crescendo que resultou para todos numa experiência ultradramática”. ela quem se encarregava da educação dos filhos e era a responsável
pelo fortalecimento dos laços familiares. Aliás, essa era uma respon-
sabilidade partilhada também por outros elementos como os tios, os
avós e até os vizinhos. Hoje já não é assim e, na minha opinião, todas es-
tas questões relacionadas com o trabalho, o modo de vida e as relações
também afetam a saúde mental das famílias, sobretudo nos núcleos
mais urbanos, e, consequentemente, tornam a vida social particular-
‘Ilhas’ é um alerta para o problema da mente mais difícil”.
fragilidade da Saúde Mental e das relações Ana Paula Pinto defende “mais e melhores políticas de apoio à família”,
assinalando a vida caótica da atualidade, que impede os jovens de ter
familiares e sociais a segurança necessária para constituir família e ter casa própria. “Os
nossos jovens têm esse nível de segurança cada vez mais tarde, têm fi-
lhos cada vez mais tarde e a vida laboral prolonga-se até cada vez mais
A autora de ‘Ilhas’ confessa ter ficado, deveras, “impressionada” com tarde e os vínculos vão-se perdendo também num contexto social que
o prémio literário conquistado e garante que foi necessária uma certa só olha para o ter e não para o ser”.
“dose de coragem” para expor a terceiros aquilo que considera ser um
registo de memórias – memórias que apoquentam, que fragilizam, que
sensibilizam e que exibem o mais profundo do ser humano: esse lugar
praticamente inacessível a que poucos conseguem chegar, os próprios
e os outros.
“A verdade é que o meu desejo foi sempre o de escrever e de anga-
riar leitores e o pseudónimo ajudava-me a manter o anonimato, fun-
cionando como uma espécie de mecanismo de segurança, mas foi,
de facto, necessária coragem para me conseguir submeter a um júri,
constituído por três pessoas, e depois saber que o conjunto de textos
que escrevi foi o escolhido para o prémio, por unanimidade, deu-me
uma alegria enorme. Indescritível”, indica Ana Paula Pinto.
“Foi mesmo uma grande surpresa quando me telefonaram porque
pensei que o meu conjunto de textos não caberia na categoria de ‘Fic-
ção’, mas coube e isso deu-me uma grande satisfação principalmente
porque o conteúdo de ‘Ilhas’ aborda várias temáticas que se cruzam
entre si, desde a questão do envelhecimento à questão da perda de
memória do ser humano”.
Temas que atravessam a encruzilhada da atualidade num mundo que
possibilita uma maior longevidade ao Homem, mas que traz ao deba-
te público o problema da institucionalização da pessoa idosa, muitas
vezes sem retaguarda familiar e com a demência a sombrear a vida de
outrora.
“Obviamente que a questão da saúde mental dos mais idosos depende
muito do fator genético de cada um, mas há muitas destas questões
que merecem e devem ser debatidas de uma forma mais alargada na
sociedade, nomeadamente as razões que conduzem e que têm contri-
buído recorrentemente para a degeneração da memória e das capa-
cidades intelectuais”, refere Ana Paula Pinto, para quem é necessário
um novo olhar para “as novas formas de vivência sociais”, bem como
para “as pressões laborais”, “o stress” e o “ritmo frenético” que marca a
atualidade, onde o tempo livre é praticamente uma utopia.
#SIMatuaREVISTA OUTUBRO · 2024 21