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ENTREVISTA


               Mas também o juíz, Dr. António Fialho merece   a padrões que repetimos e que vêm de trás: do   Sim, funciona. Os meus primeiros processos
               destaque na divulgação e promoção desta prá-  nosso  pai, da nossa  mãe, dos  nossos  avós.  As   resolvidos  através  desta  abordagem  sistémica
               tica em que as constelações foram usadas com   dores, sonhos, sensações, frustrações que eles   estavam  cristalizados  há  anos  e,  bastou  uma
               êxito em vários processos, obtendo-se assim   viveram estão no ADN e está provado também   das partes fazer uma  constelação  ou  a  “olhar
               maior equilíbrio e paz para todas as partes en-  que isto nos condiciona. O convite que a justiça   sistemicamente para”, que tudo mudou. Fazen-
               volvidas. Falar de justiça sistémica é falar, para   sistêmica faz é olhar para um conflito sob este   do o trabalho com uma das partes, o impacto é
               além dos processos jurídicos, dos processos   ponto de vista: olhar para todas as partes do   enorme na forma como a outra parte o vai ver e
               internos que atravessam as pessoas e das dinâ-  conflito na sua individualidade e na sua história   tratar o mesmo assunto. Se alguém deixa de ter
               micas que sustentam as relações humanas. A   – e poderão estar aqui em causa também orga-  uma atitude bélica, a forma como as pessoas de
               grande inovação desta abordagem sistémica é   nizações, empresas - e aplicar ao processo esta   vão relacionar no conflito muda. Tudo começa
               a pacificação das relações que procura, e desta   metodologia inovadora, com base nas conste-  por reconhecer que o conflito não está fora de
               forma chegar a uma solução mais definitiva dos   lações sistémicas (familiares, jurídicas e organi-  nós, mas sim dentro de nós, e por isso nos diz
               conflitos, especialmente nos tribunais de fa-  zacionais) e na terapia transgeracional.   tanto.
               mília, em que, quando há uma decisão em que   É a primeira vez que se permite esta aborda-
               alguém ganha e alguém perde, todos perdem.   gem no Direito?
               Quando isso acontece, a decisão judicial dificil-
               mente terá um efeito duradouro e eficaz no que   Sempre que procurava soluções alternativas
               respeita ao conflito entre as partes, porque o   para a solução de conflitos, sentia-me muito
               que geralmente acontece é haver retaliação de   frustrada, e há uns anos atrás, ao receber no
               quem perde, o que resulta muitas vezes numa   escritório filhos dos meus clientes em proces-
               sucessão infindável de processos judiciais, por-  sos de família a repetirem a história dos seus  “Os filhos são os principais
               que são ações que se estendem ao longo dos   pais, com os mesmos comportamentos deles,   interessados em que o
               anos enquanto os filhos estão na dependência   percebi que  alguma coisa estava  errada. Pro-  efeito de uma decisão de
               dos pais. Trabalho como advogada há 25 anos,   curei muito para além da mediação e da co-
               com muita incidência nas questões da família,   municação  não  violente,  mas  nada  funciona-  um processo parental seja
               e o que vejo são processos com imensos inci-  va, nem em Portugal nem no estrangeiro. Na  duradouro”
               dentes e apensos, 10, 12 e até 19! 25 anos de   minha busca encontrei um juiz brasileiro, Sami
               experiência dizem-me que alguma coisa está   Storch, que aplica esta abordagem há quase
               mal nesses processos de sistemas separati-  20 anos– embora numa realidade cultural, so-  Se o tribunal decreta que o pai pode ver o
               vistas e combativos que arrastam pessoas em   cial e política completamente diferentes, com   filho uma vez por semana, os intervenientes
               conflito ao logo de tantos e tantos anos. Mesmo   quem fiz formação. E também uma advogada   têm de aceitar.
               ganhando ações e representando uma pessoa   argentina, Cristina Llaguno, que é uma grande   Sem  dúvida,  mas  isso  resolve  apenas  a  parte
               que aparentemente parece ter razão, a questão   inspiração porque tem um trabalho amplamen-  jurídica, define de que forma será o futuro da
               é que aquela família que está em conflito é uma   te reconhecido há mais de 30 anos com esta   criança, mas não resolve o conflito latente entre
               família desavinda, e os processos que se repe-  abordagem e com resultados incríveis. Posso   pai e mãe. O que está pode detrás do conflito
               tem expressam isso mesmo. Conseguir uma re-  falar-lhe, também, na Maria Luz Godoy, uma   não fica resolvido. Os tribunais continuam a ser
               solução definitiva e eficaz para as partes em lití-  advogada espanhola que trabalha com este sis-  necessários. Isto tudo é uma evolução, é um
               gio pressupõe uma nova forma de ver o conflito,   tema há 15 anos… A abordagem sistémica tem   novo paradigma, um complemento que poderá
               considerando-o ao serviço da paz, do equilíbrio   como pilares a filosofia do Bert Hellinger, que   dar luz ao que está na origem dessa ação, levan-
               e da reconciliação. De um sistema dual, com-  tem princípios como as “ordens do amor” e as   do as partes a uma tomada de consciência e à
               bativo e separativista típico da justiça conven-  “ordens da ajuda”, que são a transposição de   autorresponsabilização.  O  ideal  seria  sempre
               cional, passamos para uma postura integradora   regras e princípios da natureza para as relações   fazer esta abordagem antes de se chegar a tri-
               que procura o equilíbrio e a paz para todas as   humanas. Se aplicarmos estas regras às nossas   bunal, mas a eficácia desta abordagem também
               partes do sistema. Trata-se a justiça como um   relações, teremos seguramente relações mais   existe depois dos casos já estarem nas estâncias
               campo de pacificação, e não de combate.  equilibradas, saudáveis e pacíficas. A isto so-  judiciais.
               O ser humano gosta de ganhar, de ter razão.  ma-se a identificação dos padrões que se re-  Qual a taxa de sucesso dessa abordagem?
                                                    petem e das lealdades invisíveis com a terapia
               Quando um ganha e o outro perde, ninguém   transgeracional,  de  modo a  podermos  chegar   Nos processos em que trabalhei até agora,
               ganha.  O  pai  que  não  paga  alimentos  e  que   à raiz de um conflito. Esta é uma das minhas   a taxa de sucesso é elevadíssima, e sucesso
               foge durante anos de pagar alimentos ao filho,   grandes paixões, é a área do trabalho que mais   aqui equivale à paz no sistema que estava em
               tem uma questão pendente que não é com o fi-  me fascina. Porque é que o pai ou a mãe privam   conflito. No entanto, também há os que não
               lho. Nenhum pai quer privar o filho dos alimen-  o filho de visitas? Vamos a história deles, vamos   se resolvem logo: há momentos em que todos
               tos. A questão estará certamente entre o pai e   à identificação. Depois, é mais fácil encontrar a   perceberam a origem do problema, mas não é
               a mãe do filho, e, por isso, os processos arras-  solução para aquele conflito, na própria história.   o momento certo para o enfrentar, e é preciso
               tam-se em tribunal. As pessoas não olham para   O incrível desta abordagem é que, ao contrário   dar tempo para que as pessoas se sintam pre-
               a raiz, para as dinâmicas que estão por detrás   da mediação, não são necessárias as duas par-  paradas. Tudo tem um tempo certo. Quando
               dos  conflitos.  Está  provado  que  todo  o  com-  tes estarem a fazer este trabalho. Na mediação,   as pessoas estão comprometidas consigo pró-
               portamento humano é fruto da emoção, não   têm de estar os dois com interesse na solução,   prias estarão comprometidas com a resolução
               vem do pensamento. Somos seres emocionais,   pressupondo sempre o acordo das partes, e   do conflito, e aí o sucesso é garantido. De referir
               e  o sistema  judicial  é puramente  racional.  Por   aqui não. Basta que uma das partes olhe siste-  que no Brasil esta abordagem é amplamente
               isso  os  tribunais  resolvem  as  questões  jurídi-  micamente e faça este trabalho, para que haja   aplicada com resultados extraordinários,  bem
               cas – que têm atrás questões sociais, questões   uma alteração no curso daquele conflito. Com a   como na Argentina e em Espanha, onde inclu-
               familiares, emocionais – de forma puramente   justiça sistémica não se racionaliza, que é o que   sivamente decorre um programa com reclusos
               racional. Algo não está certo. Aquilo que nos   se faz na mediação, e assim complementam-se.  há mais de 12 anos numa cadeia, com resulta-
               move na vida, que nos faz decidir ir por um lado   Esse tipo de resolução funciona com ‘casos   dos que estão a ser documentados por uma co-
               ou por outro, é pura emoção e, muitas vezes,   antigos’? Imagine um casal desavindo há 15   missão para o efeito. À semelhança do trabalho
               nós nem temos noção do quão condicionados   anos, em que já há muitos sentimentos ne-  que fez Dan Booth Cohen nos Estados Unidos
               estamos pela nossa história. O convite que eu   gativos de ambas as partes, muito ódio até,   e cujos resultados estão documentados no seu
               faço com esta abordagem sistêmica é olhar-  e que estão em processos sobrepostos em   livro  “Levo  o  teu  coração  no  meu  coração,  As
               mos para a nossa história,  porque muitas das   tribunal…                 constelações familiares e o sistema penitenciá-
               reações e ações que nós temos estão ligados                               rio”.


               #SIMatuaREVISTA                                 SETEMBRO · 2024                                           21
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