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REPORTAGEM
As histórias misturam-se e são muito semelhantes. A de Luzia Marques é soas está diagnosticada. Ele é praticamente um bebé. Não fala, não anda… dá
igual. “O meu filho tem 22 anos e, quando terminou o percurso escolar, tive a entender o que precisa através da irritabilidade, que costuma ser forme; se
de meter baixa para ficar com ele. Bati a muitas portas, mas ninguém ficava tem sede, pede biberão. Não verbaliza nada, nós já percebemos o que signi-
com ele. Quando soube deste lugar, vim logo cá e ele ficou. Continua a ser fica cada reação que tem”, conta.
difícil por causa dos transportes, porque temos de conjugar com os horários,
o meu e o do meu marido, temos de fazer uma ginástica suplementar, mas Com um caso tão específico como o de Samuel, a única forma de conseguir
vale a pena. Desde que entrou aqui, tem evoluído muito. Ficar em casa é ficar trabalhar é… “ser trabalhadora por conta própria. Não consigo que alguém
estagnado, por muito que eu saísse com ele”, conta, prosseguindo: “É muito me dê trabalho, porque temos as terapias, as consultas, as crises do Samuel e
difícil tomar conta de uma criança assim, porque eles precisam de estímulos sou mãe de mais duas meninas. Tem sido muito complicado gerir tudo isto”,
e aqui encontra-os, nas pessoas que trabalham aqui no Synergia, nas pes- conta. E prossegue, sem se deparar. “Nos primeiros quatro anos esteve em
soas com quem interage, nos outros meninos”. Para a mãe, esta é uma “nova risco de vida, não podíamos trabalhar, o dinheiro escasseava e recebemos
esperança. É permitir que possamos trabalhar. Não temos saídas, não há so- ações de despejo mais do que uma vez. Entretanto, consegui tornar-me tra-
luções. Se isto fechar, volto a meter baixa e vou para casa para tomar conta balhadora independente e o meu marido teve de ficar em casa a tomar conta
dele”. do meu filho como cuidador informal. Saltámos de casa em casa, despeja-
dos; vivemos de caridade, muitas vezes… Agora, o Samuel fez 18 anos e temos
VIDAS ADAPTADAS novamente um problema”. Em termos de apoios, a família tem a Prestação
social para a Inclusão (PSI) e o complemento por dependência. “Somos cin-
Há famílias que estão associadas ao projeto, mas que ainda não são uten- co pessoas em casa. Se não podemos trabalhar, como vamos conseguir ter
tes. Há muita entreajuda entre os pais que têm filhos com multideficiência dinheiro para sobreviver,? Os apoios são para ele, certo, mas e as famílias?
e foi assim que Lígia Peixoto Marques e conheceu o projeto, através de Só- Há mais pessoas em casa, temos mais duas filhas, há rendas. Se não traba-
nia Martins. “A minha filha ainda está na escola e termina daqui a dois anos. lharmos, como vivemos?”, questiona. E continua: “Passamos a vida a contar
Quando ela chegar aos 20 anos, não sei como irei fazer. É fundamental que tostões e a fazer escolhas: ir a esta terapia ou jantar? Hoje compro próteses
haja mais respostas como esta”, afirma, acrescentando que já foi “a várias ins- para as pernas e passo um mês em que não podemos comprar frango ou
tituições para perceber o que existe, mas ou não há vagas ou, quando há, não não? E a sociedade pensa que estamos em casa e não queremos trabalhar.
têm condições para receber os nossos filhos. Temos de ter a certeza que os Para receber apoio para uma cadeira, que é caríssima, estamos dois anos à
nossos filhos estão bem entregues e que têm condições físicas para os rece- espera da Segurança Social, que nos escrutina de forma quase absurda; se
ber”. Lígia acredita que o projeto vai avançar, porque a sociedade é solidária queremos uma carrinha adaptada, temos apoio para comprar a carrinha, no
e recetiva: “Se todos contribuírem com uma pequena parte, conseguiremos. nome dele, mas a adaptação custa 10 mil euros… E poderia dizer muito mais,
Precisamos de materiais e equipamentos, queremos um espaço adaptado mas continuo a ter esperança que o amanhã será melhor”.
com as condições necessárias”.
[Neste momento, é difícil continuar a entrevista, mas Cristina não permite]
Lígia Peixoto Marques enumera, depois, algumas dificuldades que ainda “A nossa realidade é muito dura, mas somos muito felizes. A culpa não é dos
precisam de mais e melhores soluções: “Continuamos a depararmo-nos com nossos filhos, mas da sociedade que não nos dá respostas. Então, procura-
muitas barreiras arquitetónicas… Bem, nós tentamos fazer uma vida normal, mos sempre as melhores soluções. Muitas das associações não aceitam o
mas há coisas que são difíceis. Ir à praia é difícil, a alimentação é difícil… vamos meu filho porque ele tem todos os problemas associados, aqui aceitam e
tirando algumas dicas com os terapeutas.” Uma das questões que surgiu na vamos conseguir que sejam tratados como merecem”, afirma com confian-
conversa foi essa mesmo: há marcas que façam alimentação pré-cozinhada, ça. E, antes de terminar, não se esqueceu de referir: “Apesar de tudo, somos
pensada para pessoas com deficiência? “Não, não existe quase nada. Quan- muito felizes. Os problemas nós vamos contornando…”
do vamos de férias, por exemplo, temos de ficar sempre num sítio com cozi-
nha, porque eu tenho de confecionar tudo. Não vou dar apenas uma sopa de O nó na garganta das histórias – ou melhor, da realidade – que nos contam é
um hotel, ela não pode passar uma semana sem proteína”, afirma. amenizada com o cenário em redor. Há genuína felicidade, há amor. Os me-
dos, as vergonhas, a raiva, as frustrações há muito ficaram para trás, porque
Apesar da referirem, várias vezes, que são felizes, chega a ser desconcertante estas famílias nada têm a perder, só a ganhar. E vão lutar por isso.
ouvir estas famílias a falar da situação em que vivem. A história de Cristina
Abreu é um desses casos. “Sou mãe do Samuel, que tem multideficiência Então… é uma chatice muito grande, que nos estraga o dia, quando alguém
provocada por uma doença raríssima, em que apenas uma em 100 mil pes- passa à nossa frente no trânsito, não é?
18 SETEMBRO · 2024 #SIMatuaREVISTA