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CRÓNICA
O HERÓI QUE NUNCA REGRESSARÁ A CASA
H omero construiu um herói com um triste fado: ele terá de Ele está perdido depois de vencer a guerra. A vitória foi um
fazer vezes sem conta a sua viagem. Isto porque se Ulis-
clímax alucinado que apenas lhe revelou a exaustão de tra-
ses é visceralmente humano, cada ser humano é Ulisses.
balhos penosos que nunca solicitou, ou que levianamente
A vida, esta nossa travessia ao longo da existência, é uma
abraçou. Sobrevém a realidade. Num desejo de regresso à
odisseia. Nascemos e vamos à procura de cumprir um
infância do mundo, nega o que aprendeu, para se redesco-
destino — queremos encontrar a nossa casa, isto é: nós
brir. “…por toda a parte andei, sem na verdade ter sido visto
mesmos. Pelo caminho, deparamo-nos com monstros
terríveis, e se fugimos de Cila, vamos ser apanhados por
Neste romance primordial onde Vergílio Alberto Vieira na-
Caríbdis.
vega, os versos são livres, fluentes como a versatilidade do
James Joyce disse que Ulisses é a personagem mais comple- em qualquer parte, porque de mim fui embora…”
mar, dimanando em retalhos de uma história que culminará
ta da história da literatura. O herói grego é pai, é filho, mari-
do, guerreiro, marinheiro, agricultor, artesão, patrão, cativo, na vingança contra o destino que sobre Ulisses desabou. É a
amante, rei, mendigo, decidido, hesitante em outras circuns- busca de uma liberdade tão pura e tão simples, como se de-
tâncias, previdente, ou então surpreendido pelo inesperado. pois de tantos sacrifícios e de tanta dedicação nada mais res-
É o herói dos mil estratagemas capturado pelos estratage- tasse do que o ponto de partida, de onde não se deveria ter
mas da fortuna. Como se reunisse em si as qualidades de saído. A felicidade só é possível em Ítaca, na origem de nós,
cada ser humano, é tudo. Por isso o seu fadário é imortal — e pois é aí que se encontra a Ilha dos Amores. Eis uma dolorosa
tão reivindicado. e fatal tragédia da existência: só após a viagem descobrimos
a nossa casa.
Joyce reivindicou-o, reduzindo a um único dia a viagem de
Ulisses na personagem inesquecível de Leopold Bloom, E a nossa casa, que tanto amamos, foi ocupada por outros
porque um dia da nossa vida conta a nossa história. Amanhã, na nossa ausência, porque os abutres rondam pela calada,
tudo se repete na busca da pátria. O Sol nasce, o Sol morre — sempre atentos. Suprema dor. Ulisses sabe que há lá intru-
e a viagem será retomada. sos, mas está tão longe, tão longe. Há a imensidão do mar de
O poeta e escritor Vergílio Alberto Vieira, nascido em Amares, permeio, e há a ira tresloucada dos elementos. E a cada nova
possuidor de uma vasta obra, fez também a viagem de Ulis- ousadia antevê a queda iminente, ele que só vencido se torna
ses, ao longo das páginas de um livro intitulado Sombras de eleito dos deuses e dos homens, porque os deuses exigem
reis mendigos, que o crítico literário Miguel Real qualificou de sofrimento para se ganhar o que, afinal, não existe senão no
poema trágico. Aceitemos a tragédia ou não, a vida é trágica. desejo.
Ulisses não queria ir para a guerra de Troia, fingiu-se de louco; Só a justiça o ajuda, mas a justiça está cheia de inimigos, e
a fúria da verdade, porém, desmascarou-o. Foi, atravessou
dez anos de combates, até à devastação de Troia, e, finalmen- tarda. É a deusa Atena, a justa, a sábia, a sensata, a mulher ar-
te, pôde regressar à pátria distante, à esposa, e ao filho que lá mada para a guerra e para a vingança contra a iniquidade. O
deixou, ainda pequeno. Só que as forças da natureza não se rei há de vingar-se, sim, “na pele e no andrajo de mendigo”,
dominam, tão-pouco a inconstância dos homens. numa nova e acutilada condição.
Então, Vergílio Alberto Vieira surpreende Ulisses em plena Eloquentes são as palavras com que se fecha o poema de
desgraçada torna-viagem, à deriva da sorte, e assume o seu Vergílio Alberto Vieira: “para sempre”, porque se Ulisses che-
rosto: “sou o que por tudo se fez passar, para cumprir o desti- gou hoje a casa, partirá amanhã, e sempre, reivindicado por
no, e aprender a dizer não”. novos timoneiros no rumo de Ítaca.
João Nuno Azambuja
72 OUTUBRO · 2025 #SIMatuaREVISTA

