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SAÚDE

                                       A SOLIDÃO PROFISSIONAL:

                                       QUEM CUIDA DO CUIDADOR


                 V                     ivemos num tempo paradoxal. Nunca estivemos tão co-
                                       Entrevista com a Analista Comportamental Elsa Dourado



                                       netados  digitalmente  e,  em  simultâneo,  nunca  tantos  se
                                       sentiram tão sós. A hiperconexão, a competitividade e a
                                       aceleração da vida moderna têm fragilizado vínculos huma-
                                       nos, transformando a solidão numa epidemia silenciosa que
                                       afeta especialmente quem trabalha em áreas de cuidado,
                                       ensino e proteção.

                                       Médicos, professores, psicólogos, militares e assistentes sociais
                                       vivem cada vez mais um isolamento emocional que mina a
                                       saúde mental e fragiliza o desempenho profissional. Para com-
                                       preender melhor este fenómeno, a revista SIM conversou com
                                       a analista comportamental Elsa Dourado, que explica os sinais
                                       de alerta e como é possível transformar solidão em solitude.

                                       Qual é a diferença entre solidão e solitude?
                                       A solidão é um estado de desconexão, frequentemente dolo-
                                       roso, onde a ausência de vínculo e partilha se transforma em
                                       sofrimento. Já a solitude é o estar só sem se sentir só — é uma
                                       escolha consciente de recolhimento, introspeção e autocui-
                                       dado. Enquanto a solidão é marcada por um vazio relacional,
                                       a solitude é plena de presença consigo mesmo. Na solidão há
                                       carência; na solitude, liberdade.

                                       Porque é tão fácil confundir estar só com estar em solidão?
                                       Desde cedo, somos ensinados a valorizar o grupo, a pertença e
                                       a aprovação externa. Assim, estar só pode ser visto como falha   emocional e as competências relacionais. Aos poucos, o vazio
                                       social, rejeição ou insuficiência pessoal. Além disso, numa so-  pode ser substituído por presença, consciência e auto aco-
                                       ciedade hiperestimulada, o silêncio e a pausa tornam-se des-  lhimento. Muitas vezes é na relação terapêutica que alguém
                                       confortáveis. Quando nos encontramos sós, sem distrações,   experimenta, pela primeira vez, um verdadeiro encontro hu-
                                       surgem muitas vezes pensamentos negativos ou sentimentos   mano.
                                       de inadequação — confundindo o simples estar só com o sofri-
                                       mento da solidão.                          Existem práticas simples que ajudam a estar bem consigo
                                                                                  mesmo?
               Eva Pereira             Como explicar que, mesmo hiperconectados, muitos se   Sim. A meditação, a escrita reflexiva, o contacto com a natu-
                                       sintam mais sozinhos do que nunca?         reza, a dança, o yoga ou uma simples caminhada consciente
                                       O paradoxo da hiperconexão é estarmos sempre ligados por   são formas eficazes de cultivar bem-estar interior. Cuidar do
                                       dispositivos, mas profundamente desligados em termos afeti-  sono, da alimentação, reservar momentos de prazer e descan-
                                       vos. As redes sociais criam a ilusão de proximidade, mas refor-  so também fortalece a relação pessoal e autoestima. Aprender
                                       çam comparações, isolamento emocional e superficialidade.   a estar em silêncio sem desconforto, escutando as próprias
                                       O excesso de estímulos digitais enfraquece a escuta, a empa-  emoções com curiosidade e compaixão, transforma o estar só
                                       tia e a presença real. A solidão atual é, muitas vezes, relacional:   num reencontro consigo mesmo. A relação mais importante
                                       estamos rodeados de gente, mas sem ninguém verdadeira-  da vida é aquela que temos connosco e pode ser cultivada to-
                                       mente próximo.                             dos os dias.
                                       Que sinais indicam que a solidão já é um problema de saú-  Solidão profissional: um sintoma coletivo
                                       de?                                        Para Elsa Dourado, este não é apenas um problema individual
                                       Quando deixa de ser circunstancial e se torna crónica, come-  mas, sobretudo, social.
                                       çam a surgir sinais preocupantes: sentimentos persistentes de   “Vivemos numa cultura que valoriza mais a performance do
                                       vazio, tristeza sem causa aparente, irritabilidade, ansiedade e   que a presença, a velocidade acima do vínculo e o individua-
                                       perda de sentido. O isolamento social pode evoluir para de-  lismo acima da partilha. A chamada ‘solidão profissional’ é hoje
                                       pressão, insónia, alterações na alimentação e até fragilidade   um fenómeno psicossocial de grande impacto, com conse-
                                       imunológica. No campo profissional, nota-se o cansaço emo-  quências graves para a saúde mental, para o desempenho e
                                       cional, a desmotivação e o burnout (esgotamento profissio-  para a coesão social. O que está em jogo é repensar a cultura
                                       nal). Quando alguém sente que não tem com quem contar,   institucional que alimenta o burnout e o afastamento afetivo
                                       mesmo estando rodeado de pessoas é, de facto, um sinal claro   justamente nas profissões que mais exigem conexão humana.”
                                       de alarme.
                                                                                  Um chamado à mudança coletiva
                                       De que forma a terapia pode ajudar a lidar com a solidão?  O combate à solidão, lembra a especialista, começa no reen-
                                       A terapia é um espaço seguro para olhar a dor sem julgamento.   contro: com o outro, consigo e com a vida.
                                       Trabalham-se as raízes emocionais da solidão — traumas, cren-  “Não se trata de romantizar o sofrimento solitário, mas de reco-
                                       ças de desvalor, medos de rejeição — e aprende-se a ressignifi-  nhecer que o vínculo humano é um fator protetivo essencial.
                                       car o estar só. O processo fortalece a autoestima, a autonomia   Resgatar a nossa humanidade coletiva é condição fundamen-
                                                                                  tal para cuidar, ensinar e proteger… juntos.”

               #SIMatuaREVISTA                                  OUTUBRO · 2025                                           53
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