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CRÓNICA JUSTIÇA
O LUTO É UM CORPO AO SOL
H á dores que não gritam. Apenas ardem. Como a pele de- E é aí que começa a parte mais secreta: a regeneração. O
pois de um dia inteiro ao sol — aquele calor que parecia
corpo aprende. Torna-se mais atento ao sol. Escolhe os
inofensivo, até que à noite, no silêncio do corpo, come-
horários certos, encontra sombra, usa proteção. Aprende
ça a queimar. O luto é assim. Uma queimadura solar na
a respeitar os próprios limites. Assim é com a alma em luto.
alma.
Uma hora, sem saber bem como, descobres que conse-
Ninguém o vê à primeira vista. Por fora, pareces igual. Con-
tinuas a dizer “bom dia”, a responder a mensagens, a ir ao
já não fere. Que podes rir sem pedir desculpa.
supermercado. Mas tudo dói. Tudo arde. Um abraço, um
Talvez devêssemos parar de exigir que os enlutados “sigam
toque, uma pergunta bem-intencionada. Estás hipersen- gues olhar para o céu e não doer. Que há uma música que
sível e ninguém percebe. em frente” como se nada fosse. Talvez devêssemos apren-
der a reconhecer os que ardem em silêncio — e perguntar,
No verão, há essa estranha exigência de felicidade. O com sinceridade, “onde dói?”. Talvez seja tempo de aceitar
mundo está de férias, há risos nas esplanadas, crianças a
correr na praia, churrascos ao entardecer. É a estação dos que há verões interiores sombrios — e mesmo assim legíti-
corpos expostos, das emoções em alta definição. E aí estás mos. E de perceber que o sol, com toda a sua beleza, tam-
tu: com o coração enrolado numa toalha húmida, à sombra bém pode ferir.
de uma ausência. Vivemos num mundo que exige que sejamos luz o tempo
Perder alguém no verão — ou viver o luto durante ele — é todo. Que brilhemos, sobretudo no verão. Agosto é o mês
um tipo raro de deslocamento. Como estar dentro de água do calor, das férias, das gargalhadas nas esplanadas. Há
com roupa de inverno. Como ter sede no meio do mar. corpos que dançam, crianças que chapinham, toalhas que
se abrem como bandeiras de liberdade. E então, pergunto:
Há também quem se queime por excesso de exposição
emocional. Tentas viver como se nada tivesse acontecido. onde cabe o luto nisso tudo?
Sais, viajas, ris — como se pudesses enganar a dor. Mas ela É difícil estar em dor quando tudo à volta celebra a vida. Há
aparece depois. Sempre aparece. Como o vermelhidão da um desalinho entre o que sentes e o que o mundo te pede.
pele quando o sol se vai embora.
Como se estivesses numa festa à qual não foste convida-
O luto, tal como a queimadura, exige cuidados que os do, mas te obrigaram a comparecer. Como se estivesses na
outros nem sempre sabem dar. Precisa de silêncio, de hi- praia com o coração coberto por uma manta preta.
dratação, de tempo. Precisa de alguém que entenda que
não dá para tocar sem ferir. Que certas zonas doem mais Se o luto for um corpo ao sol, que sejamos, ao menos, som-
do que outras. Que às vezes é preciso deixar descamar — bra. Que sejamos aloe vera. Que sejamos silêncio fresco.
deixar que pedaços de ti se soltem, sem culpa, para que a Que sejamos pele que acolhe outra pele. E que saibamos,
pele se refaça. mesmo no auge do verão, cuidar da dor que ninguém vê.
Patrícia Sousa
O AMOR SUPERA TUDO
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Literacia do luto - Sessões de Informação
Storyteller de Histórias de Vida de
Pessoas Especiais que já Morreram
Guia do Caminho de Santiago
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70 AGOSTO · 2025 #SIMatuaREVISTA

