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REPORTAGEM


               “Lembro-me de que era muito engraçado: eu, pequenito, no meio   Azeituna: “uma casa de grande crescimento musical”
               dos adultos todos, a chegar tarde a casa. Havia muitos espetáculos ao   Conta que foi durante os anos de licenciatura em Física e Química que
               fim de semana, mas a verdade é que a música e a minha participação   mais cresceu em termos musicais, ao integrar a Azeituna - Tuna da Univer-
               no grupo, nunca atrapalharam os meus estudos. Sempre fui muito   sidade do Minho, levando também com ele a sua influência e a sua paixão
               bom aluno, tive essa facilidade. Creio que isto mostra como a música   pela música e instrumentos tradicionais. “A universidade foi muito impor-
               ajuda no foco e concentração”, asseverou. “Também é verdade que   tante para mim no crescimento pessoal e na formação da minha persona-
               os tempos eram diferentes. Eu, às vezes, pergunto-me como é que   lidade, mas foi com a Azeituna que aprendi e progredi muito como músico
               seria eu nos dias de hoje, em que as crianças e os jovens têm tantos   e como homem. Sempre foi essa a minha postura: estar sempre em apren-
               apelos para tantas distrações: o telefone, a internet, os jogos, as redes   dizagem constante. Julgo que é importante conservarmos essa humilda-
               sociais, as plataformas de streaming e ainda mais 500 canais de TV -   de de que sabemos muito pouco e que podemos sempre aprender mais”.
               se para nós é um desafio, imagino para eles….”.        “Na Azeituna tive essa oportunidade fantástica de poder compor e fazer
                                                                      arranjos musicais e de apresentar esse trabalho nos principais teatros do
               Estúdio de trabalho em casa                            país: coliseus, CCB, Casa da Música, etc. Com a Azeituna tive a oportuni-
               É num pequeno estúdio em casa, que montou com as suas próprias   dade de viajar pelo mundo a cantar e fiz ainda uma banda pop/rock com
               mãos, que Daniel Pereira Cristo passa grande parte do seu tempo. Às   que corremos algumas queimas e receções ao caloiro pelo país - os Neu-
               vezes a ensaiar ou simplesmente a perceber os sons que o seduzem   rónios aBariados”, revela. Ingressou os Arrefole - uma banda folk no Porto
               ao pegar num dos vários instrumentos que tem no seu espaço.   que tocava “música mais progressiva e contemporânea a partir dos ins-
               Outras vezes, a trabalhar noutros projetos em que está envolvido   trumentos tradicionais”, em Braga integrou também Dança dos Homens,
               musicalmente.  No dia da reportagem da Revista SIM, o cantautor   com o saudoso Firmino Neiva, António Simões, José Luís Guimarães e
               bracarense tinha acabado de receber uma encomenda em casa, que   Paulo Peixoto, “num folk mais country a partir das recolhas de Ernesto
               rapidamente abriu como se fosse um presente de Natal.  Veiga de Oliveira. E, nessa altura, até toquei música angolana com o Luís
                                                                      Muxima. Portanto, a realidade é que passei por vários estilos e experiên-
               Era um handpan – um instrumento suis generis, no mínimo para os   cias musicais”.
               leigos na matéria, mas que basicamente é uma espécie de tambor de
               aço, construído a partir de duas meias-conchas coladas nas bordas,   Galiza foi a rampa de lançamento
               deixando o interior oco. Se avistado no céu, pareceria um disco voa-  Um dia chega-lhe a casa um convite da Galiza para mostrar o seu trabalho
               dor. Basta dar pequenos toques no objeto para despertar sons suaves   de estudo e pesquisa em torno dos cordofones tradicionais portugueses,
               que se transformam numa onda de tranquilidade e bem-estar. Daniel   que ia mostrando nas redes sociais. “Experiências e estudos com várias
               não esperou por ninguém. Sentou-se no sofá que tem à entrada da   afinações, experiências com diversos calibres e tipos de cordas, a impor-
               garagem de casa e experimentou o instrumento, deixando a sonori-  tância de as enrolar muito bem, a perceção da importância da micro-afi-
               dade clara e etérea emergir.                           nação partindo e ajustando a ponte junto ao cavalete nos cordofones, o
               O estúdio de Daniel Pereira Cristo é modesto, mas está apetrechado   chatear constantemente os construtores e violeiros para alguns porme-
               de instrumentos variados, desde o típico cavaquinho à guitarra clás-  nores estruturais - era algo a que não se dava importância e que passou
               sica, dos adufes à pandeireta e, espante-se ou não, aqui há também a   a fazer toda a diferença - ter um instrumento afinado é fundamental para
               guitarra elétrica ou o baixo elétrico. É que o cantautor também andou   fazer boa música, e acredito que foi um dos meus principais contributos
               pelas bandas de pop rock nos tempos de juventude. As paredes estão   para a prática destes instrumentos tradicionais, como o cavaquinho ou
               adornadas por alguns pósteres e fotos dos seus trabalhos musicais.   a viola braguesa”, explicou Daniel Pereira Cristo. Rosa González era a
               Mas por ali também não falta a família e outros objetos pessoais por   curadora do Festival de Pulso y Pua, onde Daniel acabou por se estrear
               onde a mente passa quando deseja. Possivelmente, para a inspiração.   em nome próprio acompanhado por dois colegas. A primeira apresenta-
               “Não sei bem o que me inspira. Julgo que tudo. O mundo?”, ri, lar-  ção oficial foi em Noia, a 10 de outubro de 2014, na Igreja de Santa Maria
               gamente. O olhar de felicidade que oferece, devia estar em todos os   Nova, o concerto seguinte foi no Conservatório de Música da Corunha
               rostos. Daniel sente-se feliz na pele que veste, porque escolheu lutar   e o último, no mítico Teatro Rosalía de Castro. “Foram estas as primeiras
               por fazer algo que o torna verdadeiramente o que é: um homem sim-  apresentações, a receção foi muito boa e eu acho que as pessoas estavam
               ples, honesto e divertido. É só pegar num instrumento e “perder-se”   surpreendidas não com o género musical em si, mas, no fundo, por escu-
               no seu mundo - pegou em vários e cantou inúmeros temas ao longo   tarem e sentirem os nossos instrumentos tradicionais tocados com cuida-
               de toda a entrevista, sorrindo, sempre.                do, com rigor e a soar bem e afinados. E foi nessa altura entre 2014 e 2015
                                                                      que eu decidi dar continuidade a um projeto em nome próprio”.


























               #SIMatuaREVISTA                                  JULHO · 2025                                             49
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