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CRÓNICA
RECUPERAR SARTRE
A democracia é o resultado humanista das experiências guerra, terei a faculdade de recusar (assumindo os riscos,
do passado, como um sentimento, um desejo que se
obviamente, mas assumi-los é também fazer uma escolha).
Esta recusa mostrará que há oposição à guerra. Tenho essa
persegue; e sendo um desejo, exige vontade e empe-
opção, assim como todos os outros: se a guerra acontecer
nho para o concretizar, já que a vocação humana natu-
e se prolongar, somos responsáveis.
ral tende para a ditadura. Aristóteles disse que o melhor
regime político é a monarquia, ou seja, o governo de
É a escolha de nos apartarmos do outro que põe em peri-
um só chefe que age como pai do seu povo. Se isto hoje
parece inconcebível, não o será assim tanto, se dermos
que as tiranias avançam quando os indivíduos renunciam
conta que muitos países defendem e praticam este regi-
a intervir, delegando o seu poder (nas ditaduras, as pessoas
me, com propensão gradual para a tirania — degradação go a liberdade do indivíduo, segundo Sartre, e nós vemos
ou não votam porque não podem, ou votam num candida-
também teorizada (e abominada) por Aristóteles. to único, pervertendo-se a capacidade de escolher). Até a
A democracia requer liberdade de expressão, pois só as- desavença com Camus (este dizia que a revolta é filosófica
sim é possível atingir-se a verdade. Donald Trump, o pre- e individual, mais do que coletiva) foi produtiva para Sar-
sidente da democracia modelo, pede agora aos jornalistas tre, que afirmou ser a argumentação contrária um estímulo
que façam as perguntas que ele quer que lhe façam. Deste para nos posicionarmos e nos realizarmos no mundo.
modo, a verdade torna-se impossível. Só com liberdade Esta postura perante a vida afastou-o dos partidos políti-
e empenho se pode fazer o que fez Émile Zola, correndo cos, que têm uma atitude dogmática, agindo em confor-
riscos, com o seu artigo J’accuse (Eu acuso), publicado no midade com a sua doutrina, levando a que os militantes
jornal L’Aurore em 1898, acusando grandes personalidades sirvam o partido, em vez de ser o contrário: o partido é que
francesas de abuso de poder e de mentira no caso Dreyfus, deve servir a população, tendo para isso de se adaptar à
um homem incriminado de traição num julgamento racista evolução da sociedade. Olhemos o nosso tempo: não são
(parcial, portanto) só porque era judeu. as ideologias e os sectarismos a causa de catástrofes hu-
A democracia deverá permitir que, no nosso país, os agen- manitárias? Querem servir a causa e não as pessoas, muitas
tes imobiliários e muitos proprietários de imóveis ajam delas conduzidas para a morte por obstinações irredutíveis.
como se os outros não tivessem sentimentos, pressionan- Sartre recusou o Prémio Nobel da Literatura, para o qual
do os inquilinos a saírem das casas, e até obrigando, para foi eleito em 1964, porque segundo ele o escritor não es-
poderem arrendá-las a outros por preço mais alto? Não creve para concorrer a prémios, mas sim para atuar na so-
deveria, mas esta é a ditadura do lucro, que sempre se im- ciedade, denunciando e chamando a atenção para o que é
põe contra o desejo de equidade. injusto ou pernicioso. O filósofo participou ativamente em
manifestações contra os abusos de poder, e até atacou os
O filósofo e escritor Jean-Paul Sartre disse que a partir do
momento em que existimos, estamos comprometidos dogmas e as violências dos partidos comunistas — ele que
com o mundo onde vivemos, e que nós só existimos em era de esquerda —, nunca se comprometendo senão com
a busca da verdade.
situação, empenhados na relação com os outros, como se
estivéssemos condenados à ação, o que nos torna infalivel- Nesta conjuntura global em que assistimos ao avançar do
mente livres, uma vez que, agindo, fazemos sempre uma obscurantismo, é fundamental recuperar Sartre, o homem
escolha. Assim sendo, o que acontece aos outros é da nos- que disse um dia: “Estar no mundo é aceitar tudo o que eu
sa responsabilidade. Se eu for obrigado a combater numa não sou”.
João Nuno Azambuja
60 MAIO · 2025 #SIMatuaREVISTA