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JUSTIÇA






                                        Quando a nossa filha nasceu, eu e o meu marido escolhemos
                                        chamá-la Carolina. Hoje, com 16 anos, sempre se identificou
                                       mais com meninos do que com meninas. Desde os 13 anos que
                                       nos diz que o seu nome é Gabriel. Já manifestou a vontade de,
                                        no futuro, mudar de sexo, mas, para já, quer que o seu nome
                                         seja oficialmente Gabriel e que a sua menção de sexo seja
                                       alterada para masculino. Eu e o meu marido estamos reticentes
                                         em autorizar essa mudança e gostaríamos de saber se, com
                                         16 anos, pode fazê-lo nos documentos oficiais sem o nosso
                                                            consentimento.




                                       SER PLENAMENTE, EM REGISTO
              C                        ara leitora,                               um relatório médico que ateste a sua capacidade




                                                                                  de decisão e vontade informada, emitido por um
                                       O nosso corpo tanto pode ser a nossa casa como
                                                                                  profissional inscrito na Ordem dos Médicos ou na
                                       a nossa maior prisão. Quando não nos reconhe-
                                                                                  Ordem dos Psicólogos.
                                       cemos na nossa pele, as repercussões podem ser
                                                                                  Assim, o Gabriel precisa do consentimento dos
                                       profundas, afetando o nosso bem-estar psicoló-
                                                                                  pais para poder dar início ao processo de alte-
                                       gico, social e emocional. Sermos, sem podermos
                                       plenamente ser, é uma castração da liberdade
                                                                                  No entanto, a falta desse consentimento pode
                                       que todos intimamente procuramos alcançar.
                                                                                  bloquear o exercício do seu direito à identidade,
                                       No que diz respeito à identidade de género, em   ração do nome e do sexo nos seus documentos.
                                                                                  mesmo que já tenha atingido os 16 anos e apre-
                                       2018, Portugal deu um passo enorme em prol   sente maturidade e consciência de si.
                                       dessa  mesma  liberdade  e  passou  a  reconhecer
                                       o direito de qualquer pessoa ver legalmente re-  Este é um dos pontos mais criticados na lei, por
                                       conhecida a sua identidade de género, nomea-  excluir menores de 16 anos e por condicionar os
                                       damente o nome próprio e o sexo nos documen-  jovens de 16 e de 17 anos ao consentimento pa-
                                       tos oficiais, sem necessidade de um diagnóstico   rental. Há, todavia, jovens com total clareza sobre
                                       médico ou procedimento cirúrgico. Pela primeira   a sua identidade e que são obrigados a viver com
                                       vez, o Estado reconheceu algo fundamental: a   documentos que não os representam. Além dis-
                                       identidade de género como um direito.      so, o sistema continua ancorado num modelo bi-
                                                                                  nário de género – masculino ou feminino –, o que
                                       Mais do que simbólica, esta mudança legislativa   deixa por reconhecer identidades não-binárias
                                       foi  uma  afirmação  de  dignidade  humana.  Foi  o   ou neutras, à semelhança do que já ocorre nou-
                                       reconhecimento de que cada pessoa sabe, me-  tros países da Europa.
                                       lhor do que qualquer outro, quem realmente é.
                                       Contudo, entre a letra da lei e a sua aplicação   A lei introduzida em Portugal, há sete anos, re-
                                       prática nem sempre há correspondência. É justa-  presenta um ponto de encontro entre o reconhe-
                                       mente nesse intervalo que surgem dúvidas legíti-  cimento jurídico e a afirmação íntima da pessoa.
                                       mas como a que nos apresenta.              Do ponto de vista legal, está em causa o cumpri-
                                                                                  mento  de  princípios  constitucionais  como  o  di-
               Dra. Filipa Menezes     O caso da sua filha – que hoje se identifica como   reito à identidade pessoal, à dignidade humana
               ADVOGADA                Gabriel e deseja ver esse nome e identidade re-  e à não discriminação. No plano social, estamos
                                       conhecidos – inscreve-se no que a lei contempla,   perante a garantia atribuída a cada cidadão do
                                       mas com nuances.                           acesso pleno à sua cidadania, sem constrangi-
                                                                                  mentos nem vergonha.
                                       O procedimento de mudança da menção de sexo
                                       e do nome próprio no registo civil é gratuito e   Assim, permitir que um jovem de 16 anos viva com
                                       pode ser requerido por qualquer cidadão portu-  documentos que refletem que é – e não quem
                                       guês maior de idade ou com 16 ou 17 anos, desde   presumiram que seria – não deve ser visto como
                                       que esteja representado pelos seus representan-  um ato de permissividade, mas sim de amor, res-
                                       tes legais (habitualmente, os pais), e apresente   ponsabilidade e justiça.



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