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CRÓNICA
ABRIL EM PORTUGAL
A ssim ficou mundialmente conhecido o fado Coimbra, de A história principia magistralmente: “O visconde da minha
Amália, apesar de a letra original não mencionar abril uma
rua foi um fidalgo derradeiro. Morreu com o adequado
única vez. Refere, sim, o amor irresistível. É interessan-
sentido da liquidação”. Aqui, começando pelo fim, dá-se o
te que mais tarde a renascença de Portugal como nação
milagre da ressurreição do visconde Dom Leandro, no pa-
integrada no mundo democrático tivesse sido em abril, o
lacete dos Abrunheiras, em Braga, e o narrador assistindo
mês do amor. Todas as alusões a este mês lhe concedem
ao desfile de vidas precárias, contando-nos os segredos
uma liberdade libidinosa; e começa de modo malcriado,
de uma linhagem falida, presa ao que resta de heráldicos
com o Dia das Mentiras, em que somos livres de prestar
falsos testemunhos com a mais descarada das disposições
ra, filha única de Dom Leandro (uma mulher!, por mal dos
galhofeiras. É como se despreocupadamente deitássemos
seus pecados) tem de casar para perpetuar uma estirpe
fora o que é velho, uma vez que é a época dos renascimen- pergaminhos, o que é praticamente nada. Margarida Cla-
finada, só que o chefe da ilustre família não arranjou como
tos (até Deus renasce neste abril).
noivo senão um certo “viscondesso” plebeu e de nome pe-
Provém de “aprilis”, e se há dúvidas a respeito da origem lintra. Assim, a insigne progenitura de Dom Leandro, com
desta palavra, não há dúvidas da liberdade em abril: uma o sonante nome de solteira Margarida Clara Celorico Pi-
hipótese defende que deriva de “aperire” (abrir, em latim), tães de Mesquita e Alarcão de Abrunheira, passará a usar
por ser tempo de as flores despontarem e espalharem o a reles nomeada de Margarida Clara Carrascão Picas, do
sémen aos quatro ventos, fazendo amor numa promis- pífio marido. Despeitado por esta afronta do destino, Dom
cuidade obscena; outra diz que deriva de “Aprus”, o nome Leandro não foi sequer ao casamento da própria filha, a
etrusco da deusa Afrodite, rainha da sexualidade, que por moça que para amar verdadeiramente tem de se esconder.
ela desvairou os homens, originando a guerra de Troia.
A menina de Jesus, já cinquentona, é familiar do aristocra-
Claro que isto é causa de pecado, pois a carne é fraca; só ta, que de aristocrata só tem o nome e a aparência, ela que
que é precisamente a fraqueza da carne que fortalece a quer impor o que nem o tempo nem a índole lhe permitem.
vida. Que o digam as flores, desconhecedoras de fraqueza Acolhida no velho paço, pequena e tímida, inaladora dos
alguma no instante do seu orgasmo orgiástico, elas que até ares de sacristia, tão casta como sonhadora, é a guardiã
os santos mais castos vão enaltecer em cachos e grinaldas. de uma moralidade palaciana em ruínas, e anda pelas ruas
Havia uma flor destas no antigo Nosso Café, na Avenida “cosida às paredes”, com medo de um mundo que não é
da Liberdade; só que liberdade, recusaram-lha. Era a está- o dela.
tua de uma mulher nua. Sim, completamente nua, a linda E é notável neste romance a história de Nini. Menina de
Diana caçadora, ali escandalosamente exposta, caçadora carne e osso, também ela é uma virgem de mármore, como
de olhares lúbricos, sem vergonha nenhuma, perante o a Diana do Nosso Café: não pode ser como quer, tem de
pasmo indignado da moral. Várias vezes a pobre menina
foi expulsa do café, e até roupa lhe impuseram. É uma das ser como querem que seja. Então, esquiva, tenta escapar à
virgens de mármore do romance do escritor bracarense própria sombra, porque lhe é incutida uma vergonha que
Ribeiro Pacheco (As virgens de mármore, de 1994), que deve ostentar. A forma como Ribeiro Pacheco equipara a
tão admiravelmente a descreve, ele que domina a língua existência de Nini à estátua de Diana é deliciosa, duas mu-
e a palavra, lembrando Saramago em certos momentos, e lheres que terão de se manter virgens na figura, somente
tão maravilhosamente relata a triste sina da flor impedida sonhando a liberdade, que a deusa nua até chegou a ser
de ser livre por inibição da nossa carne artificialmente vir- raptada na calada da noite pelos moralistas.
gínea.
Como no fado Coimbra, que não menciona abril, há abril
Tal como Diana, eclipsada dos nossos olhos, o livro está es- em toda a parte neste romance de Ribeiro Pacheco, nestas
quecido, o autor morreu na sombra há mais de vinte anos. evasões à norma, aspirando amores subtraídos e liberda-
Pois bem, renascerá em abril — neste abril. des furtadas.
João Nuno Azambuja
86 ABRIL · 2025 #SIMatuaREVISTA