Page 72 - SIM 302
P. 72
CRÓNICA
O BRILHO DE TIBÃES
A identidade de um povo é aquilo que o torna único e irrepe- historiador José Carlos Peixoto dá a lume até os limites do
couto, tendo ido aos sítios onde foram colocados os marcos
tível, digno de ser amado, e o amor pela cultura onde se vive
de pedra, hoje abandonados, e alguns inclusive desapare-
só existe se o indivíduo se amar a si mesmo. Ninguém ama
cidos, que delimitavam as terras do mosteiro; ou que o rei
se não se amar. Identidade é coesão. O historiador romano
Salústio, do século I a.C., disse que quando há concórdia,
Miro, dos Suevos, escolheu aquele lugar paradisíaco, que
até as nações pequenas prosperam; e se há discórdia, até
desce em branda vertente para o rio Cávado, para nele
edificar o seu palácio, ao lado do retiro dos monges que se-
as maiores se arruínam — palavras proféticas, já que foi a
discórdia a arruinar o Império Romano. Pois esta concórdia
por «Mosteiro Palatino» (monasterium palatini — «palatini»
brotada do amor impediu a destruição de muito do nosso
património cultural.
terá dado o nome a Padim da Graça, que fazia também par-
te do couto), e que Miro deu o nome a Mire de Tibães. José
O professor e historiador José Carlos Gonçalves Peixo- guiam a regra de São Bento, e que por isso ficou conhecido
Carlos Peixoto reconhece a importância fulcral de estudar
to nasceu, cresceu e vive à sombra do mosteiro de Tibães. o passado, como diz nesta sua obra das memórias do couto:
Ele mesmo assim se descreve. Como expressar melhor o “Se não ousássemos efetuar este trabalho neste momento,
amor que se sente por algo inestimável que pertence ao dentro de uma década toda a história local se perderia. Res-
lugar onde se nasceu? Deus brilha no mosteiro beneditino, gatamos, assim, da erosão e do esquecimento um conjunto
como se aqueles campanários elegantemente coroados notável de tesouros”.
de bolbos fossem o próprio Sol, e José Carlos Peixoto não
perde de vista o foco que já esteve a ponto de se apagar. O A juntar a esta dedicação, José Carlos Peixoto escreve com
amor atalhou o avanço das trevas. Ele tem a noção de que a agilidade de um poeta. Repare-se na subtileza desta pas-
o mosteiro é perecível, por isso precisa de carinho. Está sagem, na mesma obra: “Tibães é um daqueles locais que
ferido, sangra, foi amputado a ferro e fogo de um claustro parecem estar escondidos com o raro propósito de serem
inteiro e de seus anexos, dói ver a chaga em carne viva. Isto descobertos”. Isto coroa de magia aquele lugar, dá vontade
só aconteceu porque se interrompeu a ligação umbilical de lá ir respirar a atmosfera mística, de contemplar o maior
com aquela joia do nosso património. Agora, o corpo do- pinheiro de Portugal, plantado pela ternura dos monges, ou
rido, vulnerável, carece de atenção. A memória não deixa de ascender pelo escadório até ao paraíso de São Bento, es-
esquecê-lo. É esse o título de um dos livros que José Carlos calada sublime ao longo das sete virtudes. Acima de tudo,
Peixoto escreveu, coligindo os resultados de investigações dá vontade de o cuidar, e é disso que o legado cultural pre-
a Tibães e ao antigo couto, e que ganhou em 2017 o Prémio cisa: cuidado, em todos os sentidos.
de História Local Dr. Manuel Monteiro, Memórias do couto
de Tibães, incluindo preciosa informação histórica daquela O prolífico historiador tibianense escreve também sobre
comunidade, cujo trajeto foi pleno de vicissitudes após a outros locais, como o Bom Jesus de Braga, recentemente
extinção das ordens religiosas, em 1834, quando o mosteiro distinguido pela UNESCO, e cujo conselho científico da
ficou entregue à incúria e à pilhagem. candidatura do santuário a património mundial integrou.
Lembremos os livros Bom Jesus do Monte, ou O funicular
Para amarmos a nossa história temos de a conhecer, e não do Bom Jesus, devotados a “um conjunto notável de tesou-
há dúvida de que o conhecimento traz afeição. Um tibia- ros”.
nense tem orgulho de saber que a sua terra já foi a mãe de
todos os cenóbios beneditinos dos reinos de Portugal, e o
João Nuno Azambuja
72 JANEIRO · 2025 #SIMatuaREVISTA