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REPORTAGEM







                                                                                     Aos 31 anos, Paulo Mourinha,
                                                                                     com deficiência intelectual,
                                                                                     é o guia que orienta as
                                                                                     visitas de grupos no Palácio
                                                                                     dos Biscainhos. O jovem
                                                                                     foi capacitado pela CERCI
                                                                                     Braga e revela, agora, as suas
                                                                                     aptidões culturais, numa
                                                                                     ‘viagem’ que desmistifica
                                                                                     preconceitos e eleva o
                                                                                     desígnio da inclusão social.











               PAULO, O JOVEM COM DEFICIÊNCIA


               INTELECTUAL QUE É ‘MESTRE DE CERIMÓNIAS’

               NO PALÁCIO DOS BISCAINHOS

               Por: Marta Amaral Caldeira

               “Sejam bem-vindos ao Palácio dos Biscainhos!”. É trajado de serviçal e com   guém sabe o que é e Paulo sorri, discretamente, porque, mais uma vez, irá
               o elegante tom dourado e a exuberância do estilo barroco do século XVIII   elucidar os inquiridos com a sua mestre sabedoria: “este utensílio é um ra-
               que Paulo Mourinha, 31 anos, assume o papel de anfitrião junto dos visi-  pa-pés e servia para limpar o calçado antes de entrar no palácio; isto por-
               tantes do Palácio dos Biscainhos. Tem deficiência intelectual e é um dos   que as ruas, na época, ainda não eram pavimentadas e havia muita terra e
               utentes da Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos com In-  lama”, indicou, mostrando-se visivelmente contente por estar a transmitir
               capacidades (CERCI) de Braga. Mas, por estes dias, é nas asas de um sonho   conhecimentos históricos sobre a própria cidade. “Claro que quem limpava
               que se deixa levar. O sonho é tornar-se, simplesmente, um guia cultural da   o calçado eram as pessoas mais ricas e poderosas, pois os pobres andavam
               cidade de Braga.                                       descalços”, afirmou em tom de seriedade, agitando os dois grupos de visi-
                                                                      tantes, funcionários da empresa F3M e alunos e professores da Universi-
               Paulo é todo gestos e cerimónia. Fala com grande fluência e narra porme-  dade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga, que a Revista SIM
               norizadamente a história que o palácio encerra dentro de portas. Conhece   acompanhou ao longo desta reportagem.
               toda a genealogia do espaço museológico como a palma das suas mãos.
               Vibra quando fala e conduz os grupos de visitantes como um farol que guia   É no majestoso salão nobre do Palácio dos Biscainhos que o guia Paulo bri-
               os navios no imenso mar. A cada passo e à medida de cada explicação his-  lha ainda mais, atraindo a atenção dos visitantes para as cenas ilustradas em
               tórica  que vai  contando,  vai  detalhando  pequenos  pormenores  curiosos   toda a azulejaria que reveste as paredes. “Aqui, nestes azulejos estão repre-
               que provocam o riso na plateia que o segue, sala após sala. Exibe, com cer-  sentadas as principais atividades de entretenimento a que se dedicavam os
               to esplendor teatral, o conhecimento secular que atravessam as paredes   nobres como, por exemplo, a caça”.
               de um dos mais visitados e reconhecidos equipamentos culturais da cidade
               de Braga, que, neste momento, recebe apenas visitas a meio gás, uma vez   Dirigindo-se  a  um  grande  espelho  colocado  no  centro  do  salão  nobre,
               que está em obras de reabilitação, que, em breve, tornarão o palácio mais   Paulo convida os visitantes a juntarem-se a ele. Todos olham para as suas
               acessível também a todos os públicos.                  figuras refletidas no espelho, mas o guia chama a sua atenção, pois o obje-
                                                                      tivo não é esse… “Preciso que olhem para o que o espelho reflete… É uma
               “Neste átrio, que outrora foi o chão da cavalariça do palácio, costumam es-  pintura que está no centro do teto, onde está ilustrado o martírio de um
               tar em exibição dois veículos de locomoção: a cadeirinha – que servia para   jesuíta bracarense, há 400 anos, chamado beato Miguel de Carvalho, ocor-
               transportar a senhora da casa, com a força dos braços de dois sargentos, e   rido a 25 de Agosto no Japão”. A pintura tem 300 anos e é da autoria de
               a liteira – que também servia de transporte, mas era movida a força animal,   Manuel Furtado Mendonça, incluindo-se no contexto de pintura de tetos
               com o apoio de duas mulas, uma à frente e outra atrás”, explica Paulo, na   em Portugal – uma prática artística cultivada durante a primeira metade do
               receção ao grupo visitante. “Alguém tem dúvidas?”, vai perguntando, ao   século XVIII.
               jeito do professor que dá uma aula a uma turma. Não. Poucos ficam com   Retomando a palavra, o guia cultural do Palácio dos Biscainhos orienta o
               dúvidas porque as explicações detalhadas que o Paulo dá são declarações   olhar dos visitantes para as talhas douradas dispostas em cada canto do
               históricas memorizadas ao mais ínfimo pormenor.
                                                                      salão nobre. “Conseguem descobrir que figuras são estas que aqui estão
               Já no piso superior, os visitantes voltam a ser inquiridos: “alguém sabe o que   representadas?”. De novo, silêncio. E, de novo, o rosto de Paulo volta a ilu-
               é isto?”. O guia cultural pergunta, apontando para um pequeno utensílio   minar-se como quem está prestes a fazer uma grande revelação mundial:
               de ferro colado ao chão, atrás da primeira porta que encontramos. Nin-  “estas figuras representam os índios sul-americanos”.


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