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OPINIÃO
“VEMO-NOS EM AGOSTO”
“Os filhos decidiram desobedecer. E ainda bem: o
romance incompleto de Garcia Márquez é um esforço
literário maravilhoso, feito contra todos os conselhos e
confortos. É a última obra de um escritor genial que não
podia não escrever.”
Miguel Esteves Cardoso
D ez anos depois da morte de Ga- morte, autorizando-se a escrever contra todos os acima de todas as outras considerações. Se os lei-
ventos e marés, dia a dia, ano após ano, sem ro-
tores celebrarem o livro, é possível que Gabo nos
briel Garcia Márquez, os seus
teiro, sem memória, sem horizonte, presentean-
filhos, Rodrigo e Gonzalo Garcia,
perdoe. É nisso que confiamos. O peso da idade
do-nos com um encontro permanente do seu
decidiram desobedecer. Contra-
transcendeu para a sua obra”.
riando a vontade expressa pelo
em cada palavra desta história que nos deixou por
pai, publicaram o seu último ro-
zalo, porque se trata da primazia do coração sobre
mance, “Em agosto nos vemos”. Um romance coração e todo o presente que viveu e escreveu E o veredicto dita a inocência de Rodrigo e Gon-
acabar para que ele possa, assim, ter futuro. Esse
inacabado, que o escritor começou aos setenta presente era, na realidade e no sonho, o seu maior a mente. A força, a entrega e a coragem que Gar-
anos e que o acompanhou na demência até dele tesouro, o único talvez. Haverá algo maior na vida bo deixou no livro guardado na gaveta durante
desistir, aos setenta e sete anos, por não mais ser do que fazer dos dias o que grita o coração? Arris- dez anos provaram que o sim que o seu coração
capaz de o ter presente por inteiro dentro de si camos dizer que não, e que foi exatamente esse não foi capaz de dizer é infinitamente maior que o
e da sua mente. “Um dia acordas e estás velho. grito do coração de Garcia Márquez que os filhos não que a sua mente falou.
Assim, sem aviso prévio, é assustador”, disse o ouviram ao logo destes dez anos depois dele par- É isto a Justiça Sistémica.
escritor ao longo da grande batalha que travou tir. O mesmo grito que lhes revelou que, afinal, a
enquanto escrevia o que sabia ser a sua última grande fantasia não está no realismo mágico que O mundo celebra o livro póstumo de Garcia Már-
história. Uma batalha desmedida entre a demên- o pai inventou. A grande fantasia da vida é acredi- quez. Bendita desobediência!
cia que se instalava e o perfecionismo a que se tar na ilusão do controle e da perfeição.
impunha e que ditou toda a sua vida.
E isto muda tudo, porque sem o dizer, sem o es-
“A perda de memória que o nosso pai sofreu nos crever, Garcia Márquez mostra-nos que não há
seus últimos anos foi, como é fácil de imaginar, outra forma de viver senão neste movimento
duríssima para todos nós. Mas particularmente a constante de equilíbrio e desequilíbrio de vida e
maneira como essa perda diminuiu a sua possi- morte, de luz e sombra, de vitória e de fracasso,
bilidade de continuar a escrever com o rigor do de alegria e tristeza, e que só quando ficamos
costume foi, para ele, uma fonte de frustração muito tempo na sombra é que nos poderemos
desesperante. Ele disse-nos isto com a clareza e transcender e chegar a esse lugar onde todas as
a eloquência de um grande escritor: ‘A memória é, narrativas do inconsciente fazem o inconsciente
ao mesmo tempo, a minha matéria-prima e minha ser mais possível e consciente. Um feito heroico
ferramenta. Sem ela, não existe nada’”, escrevem que transcende qualquer prémio nobel e huma-
os filhos no prefácio do livro póstumo. Mas existe, niza um escritor genial que acreditou na força do
e é este seu romance que nos mostra que Garcia invisível, na magia, em tudo o que acontece com
Márquez estava enganado. a própria vida para além do que se diz, porque
acreditou também na narrativa do silêncio e de
A verdade é que, contrariamente ao que pen- tudo o que nele cabe. Como a coragem de não
sou quando disse “este livro não presta. Tem que ser perfeito.
ser destruído”, o resultado do esforço de Garcia
Márquez neste seu último romance foi, além de Só a desobediência dos filhos tornou possível co-
genial, heroico. Até aqui, ninguém como ele jun- nhecermos a bravura do coração de Garbo. “Não
tou a imaginação com a realidade num mundo de o destruímos, mas ficou de lado, na esperança
possibilidades, o fabuloso realismo mágico que que o tempo decidisse o que fazer com ele.” O
inventou para nós e onde podemos viver tudo o tempo decidiu publicá-lo, e ainda bem. Muito
que sonhamos. Mas, “Em agosto nos vemos” é além da história da Ana Magdalena Bach que to-
diferente de tudo o que ele escreveu e vai além, dos os anos volta à ilha para se permitir ser uma
muito além do genial, porque transborda toda a pessoa diferente uma noite por ano, está a vida
coragem e vulnerabilidade de quem se quis per- apaixonada de um homem para quem a demên-
feito, e prova que é quando nos desviamos do cia não significou uma perda irreparável da vida
caminho lógico e racional que podemos abraçar que poderia ter sido, porque foi. Mesmo nos últi-
o caos que vive dentro e perceber o quão sublime mos anos, alheado das suas plenas capacidades
pode ser o imperfeito e o inacabado. É isto que mentais, viveu como sempre quis viver, escreven-
também nos ensina Bert Hellinger quando diz do. A demência só reforçou o seu mote de vida,
que que “só o imperfeito pode evoluir. O perfeito “Viver para contá-la”, apresentando-se ao mundo
Saiba mais em:
já estagnou, cristalizou-se. Portanto, só o imper- como potência criativa quando impregnada de Avenida 31 de janeiro nº 270
feito tem futuro.” amor. 4715 – 052 Braga
Neste livro Garcia Márquez uniu o impensável, a Rodrigo e Gonzalo confessam: “Num ato de trai- +351 915 270 270
demência e o genial, o medo e o amor, a vida e a ção, decidimos colocar o prazer de seus leitores bemvindo@affectum.pr
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50 AGOSTO · 2024 #SIMatuaREVISTA