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SAÚDE
COMPREENDER A DOR
Q uando se pergunta a qualquer grupo de pessoas, inde- categorizá-la numa perspectiva bioquímica ou anatómica.
Como internista, sou testemunha de quase todas as suas
pendentemente da idade, sexo ou condição social, qual o
formas e mesmo assim não existe dia em que não seja con-
sintoma, problema de saúde ou complicação de uma qual-
frontado com as minhas insuficiências. Não sei qual o nú-
quer doença que possa vir a ter que mais teme, a resposta
é quase sempre: a dor! Mesmo quando confrontados com
mero actual de pessoas no mundo que sofrem de dor, mas
uma doença fatal, desde a altura do diagnóstico até ao de-
esse número acaba por ser irrelevante porque qualquer
que seja, pecará sempre por defeito.
senlace final, a pergunta é quase universal: irei sofrer? Não
quero ter dor!
níveis para o controlo da dor. São dezenas de fármacos,
Ironia do destino, a dor pode ser simultaneamente um dos
mecanismos mais importantes na preservação do nosso
cada um com a sua indicação ou peculiaridade e ainda
organismo e, quando no contexto de uma doença crónica,
assim a dor enquanto sintoma é frequentemente mal com-
um dos maiores factores de sofrimento e consequente per- Existem actualmente várias classes farmacológicas dispo-
preendida e até mal aceite pelos próprios clínicos. Talvez
da de qualidade de vida. De facto, frequentemente a dor porque seja um sintoma pelo qual mais tarde ou mais cedo
ultrapassa a condição de sintoma e torna-se ela própria a todos passamos ou do qual temos memória em alguém
doença, autónoma e dominadora. próximo ou ainda porque não o podendo confirmar ou
quantificar preferimos desvalorizar.
Mas a dor, enquanto conceito genérico, encerra em si
tudo o que a vida representa: a dor pode ser felicidade no E os exemplos repetem-se todos os dias. Confesso que em
contexto do trabalho de parto, pode ser física num trauma quase 30 anos de actividade médica ainda me surpreende
isolado ou numa doença crónica, pode ser desespero e so- a leviandade com que frequentemente dizemos “esse tipo
lidão quando enquadrada na doença mental ou num mo- de lesão não pode doer tanto!” ou “essa dor é porque está
mento de luto. A dor pode ser sentida, sofrida, limitante ou deprimido!” como se a intensidade da dor dependesse da-
libertadora mas nunca consegue ser adequadamente me- quilo que nós achamos adequado, como se na ausência de
dida. E por isso é talvez um dos sintomas ou condição mais uma evidência anatómica a dor sentida fosse menos im-
frequentes que ainda assim se caracteriza por um carácter portante. E o que me parece ainda mais grave é que tendo
pessoal, único, não quantificável. A dor é vivida por cada consciência de tudo isto, também eu próprio me ouço a re-
um de forma diferente e ninguém em nenhuma circuns- petir este tipo de sentenças.
tância pode alegar que conhece ou mesmo compreende
completamente a dor do outro. A dor é universal mas priva- É verdade que temos agora consultas de dor com a capa-
da, frequente mas individual! cidade de actuar a um nível muito mais elaborado, mas a
consciencialização de que a dor tem um carácter social que
É por tudo isto que se torna impossível abordar a dor como vai muito além do sintoma ou doença médica ainda está
um fenómeno específico, susceptível de se definir de forma longe de acontecer e mais distante ainda está a capacidade
simples, de se enquadrar numa classificação linear. de promover mudanças significativas na prática clínica e na
compreensão destes doentes.
Cada clínico procura compreender a dor dos seus doentes
em função da especialidade que tem, da ortopedia à neu-
rologia, da oncologia à psiquiatria e cada investigador tenta
Prof. Doutor José Delgado Alves
Especialista em Medicina Interna
e Farmacologia Clínica.
Professor de Terapêutica Médica,
NOVA Medical School, Lisboa.
Director do Serviço de Medicina
IV e da Unidade de Doenças
Imunomediadas Sistémicas,
Hospital Fernando Fonseca,
Amadora.
Coordenador do Núcleo de
Estudos de Doenças Autoimunes
da Sociedade Portuguesa de
Medicina Interna.
JANEIRO · 2023 07