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JUSTIÇA
Não falo com o meu filho há mais de cinco anos
devido a uma desavença e, por esse motivo, não
quero que ele herde nada do meu património.
Legalmente, o que posso fazer para concretizar essa
minha vontade?
C O LIMITE DA VONTADE
primeiro lugar, assegurar a continuidade e proteção
aro leitor,
da linha de descendência.
Desavenças familiares profundas podem levar à ru-
tura total de contacto entre pais e filhos, e, com o
Muitos pais consideram que podem contornar a si-
passar do tempo, surge a vontade de que essa dis-
tuação doando os bens ainda em vida. Contudo, a
lei protege também os herdeiros legitimários nesse
tância se reflita também no destino dos bens. Po-
rém, o Direito português não é neutro em relação a
contexto. Mesmo que todos os bens tenham sido
esses laços: a lei protege certos vínculos familiares,
mesmo quando a convivência se quebra.
do isso acontece, as doações feitas em vida podem
ser parcialmente revertidas ou compensadas, para
Em Portugal, os filhos pertencem ao grupo das pes- doados, o filho tem sempre direito à legítima. Quan-
garantir que essa quota mínima não é violada. Isso
soas chamadas herdeiros legitimários. Isso significa significa que nenhuma doação pode eliminar por
que, mesmo que o testador deseje deixá-los fora completo o direito do herdeiro legitimário, que po-
da herança, uma parte do património será sempre derá reclamar judicialmente o que lhe pertence por
reservada para eles, independentemente do que lei.
esteja escrito num eventual testamento. Essa parte
é chamada legítima e representa uma fração im- Ainda assim, o legislador dispõe de alguma margem
portante do total da herança, deixando apenas uma de liberdade. O autor da sucessão pode decidir o
pequena margem para o testador dispor conforme destino da parte do património que não integra a
a sua vontade. Assim, quando um progenitor pre- legítima, deixando-a, por exemplo, a outro familiar,
tende excluir um filho da herança, depara-se com a uma instituição ou a alguém da sua confiança.
um limite jurídico, não sendo possível fazê-lo pura e Também pode recorrer a instrumentos legais de pla-
simplesmente através de testamento. neamento sucessório, criar usufrutos ou reservas, ou
simplesmente organizar o seu património de forma
A única exceção que permite afastar um herdeiro a equilibrar vontade pessoal e cumprimento da lei.
legitimário é a indignidade sucessória ou a deserda-
ção, situações muito restritas que exigem motivos Em muitas situações, contudo, a questão vai além
graves, nomeadamente: o herdeiro legitimário ter do plano jurídico. A rutura prolongada entre pais e
praticado um crime doloso contra a pessoa, bens ou filhos é também uma ferida emocional. Por vezes,
honra do autor da sucessão, algum descendente, as- as decisões patrimoniais tornam-se a forma de ex-
cendente, adotante ou adotado, no caso de ao crime pressar uma mágoa que nunca encontrou lugar para
corresponder pena superior a seis meses de prisão; ser dita. Por isso, antes de tomar medidas definiti-
ter sido condenado por denúncia caluniosa ou fal- vas, pode ser útil procurar compreender se o que se
so testemunho contra as mesmas pessoas; ou, sem deseja é realmente excluir ou se há ainda algo que
Dra. Filipa Menezes justa causa, ter recusado ao autor da sucessão ou ao pode ser reparado.
ADVOGADA seu cônjuge os devidos alimentos. No entanto, mes- Em suma, no ordenamento jurídico português não é
mo nesses casos, é necessário que os factos possam possível eliminar completamente um filho da heran-
ser provados e que a deserdação seja expressamen- ça, salvo em casos muito excecionais. O que se pode
te declarada.
fazer é organizar o património de forma consciente,
Fora dessas situações, a lei entende que a ligação dentro dos limites legais, e decidir livremente sobre
entre pais e filhos subsiste, ainda que o afeto se te- a parte que não está protegida por lei. A lei não im-
nha perdido. É uma escolha deliberada do legisla- põe amor, mas também não ignora o vínculo que,
dor, que entende que o património familiar deve, em mesmo distante, continua a existir.
80 NOVEMBRO · 2025 #SIMatuaREVISTA

