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CRÓNICA


                                       AS TRÊS MULHERES E OS ONZE

               D                       .  Afonso  Henriques  reinou  durante  cinquenta  e  sete   da rainha D. Mafalda, nunca conspirou contra o pai nem
                                       FILHOS DE D. AFONSO HENRIQUES...



                                                                                  contra o irmão. Foi leal até ao fim. O seu nome é apagado
                                       anos, o mais longo reinado da História de Portugal. Foi
                                                                                  pelos séculos, mas o seu corpo repousa onde poucos têm
                                       mais do que um guerreiro ou um diplomata. Foi um cons-
                                       trutor. Fundou o reino, afirmou a independência face a
                                                                                  esse privilégio: ao lado do próprio D. Afonso Henriques, no
                                                                                  Mosteiro de Alcobaça. Um símbolo de reconciliação, hon-
                                       Leão e Castela, fortaleceu a ligação ao Papado, estabe-
                                                                                  ra e reconhecimento silencioso.
                                       leceu alianças com ordens religiosas e reconquistou ter-
                                       ritório aos mouros com coragem, astúcia e persistência.
                                       Mas para lá da figura política e militar, existiu o homem:
                                                                                  mas documentada como mãe de duas filhas do rei. Ambas
                                       devoto, ambicioso e, como tantos senhores medievais
                                                                                  casaram com nobres da corte, o que revela o papel estra-
                                       do seu tempo, pai de muitos filhos — onze ao todo — de   A terceira  mulher  foi  Elvira  Gualtar, figura  mais  discreta
                                       três  mulheres  distintas.  Entre  eles,  um  filho  ilegítimo   tégico  destas  uniões extramatrimoniais  na  afirmação  da
                                       foi o mais velho, o mais corajoso e talvez o mais injusta-  dinastia nascente e no equilíbrio de poder entre linhagens.
                                       mente esquecido: D. Pedro Afonso.          De Elvira nasceram, segundo os estudos mais aceites, D.
                                                                                  Urraca Afonso e D. Teresa Afonso — mulheres que, mesmo
                                       Ao contrário da imagem simplificada que tantas vezes nos   fora do casamento régio, serviram a política do reino atra-
                                       chega  através  dos  manuais  escolares,  D. Afonso  Henri-  vés dos seus casamentos e descendência.
                                       ques teve três mulheres conhecidas. Apenas uma foi sua
                                       esposa legítima: D. Mafalda de Sabóia, filha do Conde de   Ao todo, os onze filhos de D. Afonso Henriques espelham
                                       Sabóia e descendente de famílias influentes do norte de   a complexidade e o pragmatismo do tempo medieval. Os
                                       Itália. O casamento realizou-se em 1146 e dela nasceram   sete filhos legítimos de D. Mafalda formaram a base da di-
                                       sete filhos legítimos: D. Henrique, que morreu em criança;   nastia e da aliança com a Igreja. Os quatro filhos ilegítimos
                                       D. Urraca, que foi rainha de Leão e mãe de Afonso IX; D.   — Pedro, Afonso, Teresa e Urraca — ajudaram a consolidar
                                       Teresa, que casou com Egas Moniz de Ribadouro; D. Ma-  o poder régio através da nobreza e da administração. Uns
                                       falda, D. Sancho, D. Sancha e D. Branca — sendo estas úl-  viveram como reis, outros como freiras. Uns morreram no
                                       timas três figuras de vida religiosa, ligadas ao Mosteiro de   silêncio das celas conventuais, outros tombaram nas cam-
                                       Lorvão. Entre todos, foi D. Sancho I quem herdou o trono,   panhas da Reconquista. E houve um que, não tendo sido
                                       tornando-se o segundo rei de Portugal, conhecido como   rei, foi digno de sê-lo: D. Pedro Afonso, o mais velho, o mais
                                       “o Povoador”, por ter incentivado o repovoamento das ter-  fiel e o mais ignorado.
                                       ras conquistadas.
                                                                                  D. Afonso Henriques foi o pai do reino. Não só pela espa-
                                       Mas antes de Mafalda, ou durante, Afonso Henriques teve   da, mas também pelo sangue. A sua descendência mos-
                                       outra  mulher:  Flâmula  Gomes,  dama  da  nobreza  galai-  tra-nos que a fundação de Portugal não foi apenas uma
                                       co-portuguesa. Com ela teve dois filhos: D. Afonso e, so-  questão de batalhas e tratados — foi também uma rede de
                                       bretudo, D. Pedro Afonso — o mais velho de todos. A sua   afetos, de lealdades e de escolhas difíceis. E se a História
                                       ilegitimidade afastou-o da sucessão, mas não da História.   consagrou o rei fundador, talvez esteja na altura de reco-
                                       Pedro  Afonso  distinguiu-se  como  guerreiro  e  adminis-  nhecer também o valor do seu primeiro filho. Não reinou,
                                       trador. Serviu o reino com bravura, governou terras com   mas repousa com ele. E isso, na linguagem dos símbolos,
               Paulo Freitas           justiça e, apesar de ter ambicionado o trono após a morte   diz tudo.
               do Amaral
               Professor, Historiador e Autor





























               82                                               AGOSTO · 2025                                #SIMatuaREVISTA
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