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CRÓNICA COMERCIO
A PROPÓSITO DE FÉRIAS
E stamos em agosto, mês habitualmente destinado a férias. tem às vivências dos forasteiros é uma praga muito em voga.
Mas o que significa ir de férias? A palavra deriva do latim
Em Roma, sê romano.
«feria»: dias em que se interrompe o trabalho por deter-
Séneca — o meu inseparável Séneca — disse um dia a Lucílio:
minação civil ou religiosa — e a palavra feriado conserva
“Vais viajar? Toma o cuidado de não ires na companhia de ti
este sentido. Ora, não interrompemos o trabalho por nos-
mesmo”. É isso, vou deixar-me em casa. Vou relegar aquela
sa espontânea vontade, mas por convenção social e com
tortura que nos consome sempre que saímos para férias: a
data marcada não por nós mas por imperativo do serviço.
Calma, não estou a ser derrotista, pois já que se trata de
que tormento! “Tenho a angustiante impressão de que me
uma imposição da nossa condição de seres civilizados, dis-
esqueci de alguma coisa”, dizemos na abalada. Na verdade,
pomos de uma boa escapatória: aproveitar estes dias. sensação de que nos esquecemos de alguma coisa. Jesus,
não nos esquecemos de coisa nenhuma, queremos é levar-
Vamos então tirar férias da trivialidade e fazer uma viagem -nos a nós mesmos, e se pudéssemos enfiávamos a casa in-
não de carro ou avião, mas nas asas do tempo, visitando os teira mais a rotina dentro da mala.
conselhos de quem desejou que tirássemos férias verdadei- Esta sensação opressiva de que nos falta algo deve-se a não
ras. De quê? Do emprego? Do ramerrame? Dos nossos co- nos apercebermos dos nossos vícios, que nos ofuscam. Ou-
legas de serviço, alguns deles tão enfadonhos? Dos nossos çamos então Epicuro: “O começo da cura é a autoconsciên-
patrões rabugentos? De ordens absurdas a que nos devemos cia do erro”. Cá está: se é erro nosso, para quê bater no cegui-
submeter? Da burocracia esgotante? Nada disso. Fugiremos nho? Pronto, já posso partir mais folgado.
de nós mesmos. Sei que é difícil, mas não é impossível. Faça-
mos um esforço, dispamos a nossa roupagem de criaturas Vamos dar um salto no tempo até ao século XX, pois nestas
acondicionadas no hábito. férias tudo é possível. Um dia, na Argentina, o jovem Ernes-
to Guevara (o futuro Che Guevara), farto da «porca da vida»,
Talvez estejam a pensar: “O quê!? Prescindir do telemóvel?” sugeriu a um amigo: “E se fôssemos à América do Norte?” “À
Não senhor, não é necessária solução tão radical, embora América do Norte? Como?” “De mota, homem!”. Despedi-
seja bom ganharmos certa independência do peso desse ram-se deles mesmos e lá foram, sem sensação de esqueci-
aparelho. (Lembro-me de uma vez ter ido a Inglaterra e uma mento de futilidades, transportando somente o que servisse
das pessoas que foram comigo ter entrado em pânico ao ao bom funcionamento do veículo, como peças sobresselen-
aperceber-se de que as tomadas de lá não eram compatíveis tes; ou seja, levaram o que os ajudasse a escapar da rotina. É
com os nossos carregadores de bateria. Para ela, foi como se impressionante o relato de Ernesto Guevara no diário desta
o mundo tivesse colapsado. Que proveito se tira de umas fé- viagem, publicado mais tarde, porque fizeram o que poucos
rias assim, enchumbadas de nós mesmos?) modernos são capazes de fazer: evadir-se de si. “O eu que
burila este escrito não sou eu”, registou no livro, “Este vaguear
Ora vamos lá escutar algumas sugestões. Sócrates disse um sem rumo pela nossa maiúscula América mudou-me mais do
dia a quem se queixava que as suas viagens não lhe melho- que julguei”. O amigo acabou por regressar, mas o Ernesto já
ravam a disposição: “Isso é porque levas contigo a tua dispo- não era o Ernesto, era o Che, que acolheu o mundo durante
sição”. Eis uma farpa para o meu colega do carregador. Bem a jornada.
vistas as coisas, a serenidade resolve qualquer embrulhada,
para mais no mundo de hoje, com tudo ao alcance. A cultura Não vos peço tanto — até porque Che só há um —, mas deixo
dos outros é diferente da que levamos para lá, e é isto que nos um conselho pequenino: desfrutai das férias tirando férias de
custa a aceitar — a exigência de que os autóctones se adap- vós mesmos.
João Nuno Azambuja
76 AGOSTO · 2025 #SIMatuaREVISTA AGOSTO · 2025

