Page 24 - SIM 287
P. 24

ESPECIAL

            Neste capítulo, Igal Sarna
            conta as peripécias que o
            trouxeram até ao Alto Minho,
            mais precisamente Candemil,
            Vila Novas de Cerveira.

            CAPÍTULO 15



            “Cheguei ao Alto Minho ao cabo de dois anos de luta
            desesperada no próprio país onde nasci. Na juventu-
            de, combati em duas guerras como comandante de
            tanque. Estudei, criei uma pequena família, enterrei
            os meus pais, que tinham sido dos primeiros sionistas.
            Durante mais de trinta anos, fui um jornalista de inves-
            tigação apaixonado pelo seu trabalho, escrevendo
            centenas de histórias para um suplemento de fim de
            semana. Atraía-me o drama da criminalidade. Estive
            presente em muitos locais de crime, acompanhando
            homicídios,  raptos,  desaparecimentos  de  crianças.
            Acompanhei políticos nas suas campanhas eleitorais,
            mas preferia mil vezes entrevistar poetas, assassinos,
            reclusos, cientistas, autores ou vítimas.
            Não raro, remontei com os entrevistados aos fantas-
            mas da infância deles. Acreditava que a raiz de cada
            drama, desde o homicídio, o crime grave e o suicídio
            até o esforço criativo, o fracasso, a derrota ou a vitória,
            jaz no início da vida do protagonista; no seu lar, na sua
            família, na sua infância; no seu país e na sua história.
            Depois de tudo o que vi, ainda acredito que cada
            drama tem um momento crucial a palpitar no pas-
            sado, como uma bomba-relógio. Escrevi dez livros,
            essencialmente documentais, e cobri cada centíme-
            tro quadrado de lés a lés em Israel — fundado apenas
            quatro anos antes de eu nascer.
            País minúsculo, cerca de um quinto de Portugal, tem,
            desde a sua criação, conhecido o conflito armado
            permanente. Chamo-lhe «triste milagre». Parece trá-
            gico que pessoas que procuravam abrigo depois da
            guerra e da destruição tenham acabado em guerra
            com os nativos da terra que vieram ocupar.
            Amo as jornadas horizontais e verticais, as conversas
            com as pessoas, penetrando nas suas casas e nas
            suas vidas. Sou, de meu natural, curioso. Através da
            escrita, combati muitas vezes políticos ou indivíduos
            cujas ações sentia ameaçarem o meu país. O meu
            pai ensinou-me a ser um patriota altamente crítico.
            No primeiro-ministro Netanyahu, desde o momento
            em que assumiu funções há vinte e sete anos, vi uma
            grave ameaça para a terra onde criei os meus filhos.   Sara Netanyahu é famosa pelos seus acessos tempe-  da minha vida, necessitava um novo lar para proteger
            Ataquei-o amiúde pela pluma. Há alguns anos, o meu   ramentais.             o meu sonho. «As casas importantes para nós são as
            nome veio ao de cima numa acerba troca de palavras   Todas as testemunhas deste incidente pertenciam ao   que nos permitem sonhar em paz», observa Frances
            entre ele e o meu editor. Alegadamente, tratou-se de   pessoal dos serviços secretos, a Unidade de Seguran-  Mayes. «Onde estamos é quem somos… Nunca ca-
            uma conversa dolosa com vislumbres de suborno, e   ça 730, oficialmente vinculada a uma obrigação de   sual, a escolha de um lugar é a escolha de algo que
            o seu teor chegou à imprensa e aos tribunais. Nesta   confidencialidade. A minha fonte também guardou   almejamos.»
            conversa, a minha cabeça foi posta no cepo. O gover-  silêncio, e eu respeitei essa opção. Fui julgado num   Assim é a casa de Candemil pela qual optámos.
            nante detestava os meus escritos, e o editor, farto das   processo por difamação e condenado em três ins-  «Quanto mais o lugar penetrar em nós, mais a nossa
            pressões e da minha insistência em escrever o que   tâncias judiciais. O homem forte que nos governa a   identidade se fundirá com ele.»
            sentia ser a verdade, acabou por lhe dizer, em tom   todos, senti, também dita as opiniões dos juízes. De-
            violento: «Faça o que quiser. Mate-o.»   pois do julgamento, fui despedido do jornal que me   Durante muitos anos, foi o que senti no pequeno, e
                                                                                        caro, apartamento alugado em Telavive, o espaço
            Falava a sério somente quanto à primeira parte.   empregara durante trinta anos. Estava livre, mas mui-  que foi minha caverna durante anos — onde estava
                                                  to vulnerável e quase ostracizado na minha pátria, es-
            Passaram-se cerca de três anos até que o primeiro-  magado pelo seu dirigente e pela mulher. Sentia-me   protegido e calmo, no  coração de uma terra volá-
            -ministro encontrou um pretexto para me processar   como alguém que perdera a batalha mas ganhara a   til. Aí abanquei e escrevi, aí vivi e amei. Portanto, em
            por difamação. No Facebook, não no jornal, eu tinha   liberdade de fazer o que lhe apetecesse.   Candemil, penso abancar e escrever no estúdio ou
            escrito que, na sequência de um incidente ocorrido                          no quarto, no sótão ou nos compartimentos térreos,
            no séquito de alta segurança de Netanyahu, a mulher   «A casa protege o sonhador», escreveu o filósofo   onde outrora se abrigavam animais — casa com uma
            deste acabara por o atirar para fora do veículo.   Gaston Bachelard.        janela que dá para uma paisagem europeia verdejan-
                                                                                        te, vista pela qual tanto ansiei sem o saber.”
                                                  Em 2017, mais do que em qualquer outro momento
            24                                                  OUTUBRO · 2023
   19   20   21   22   23   24   25   26   27   28   29