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JUSTIÇA                                                                                                                            TRAIL RUNNING




                                         Estou em processo de divórcio e tenho duas filhas
                                         em comum com a minha futura ex-mulher: uma de
                                         cinco anos e outra de três. Ela trabalha com redes
                                         sociais e costuma partilhar o dia-a-dia das nossas
                                        filhas, mesmo até quando fazem birras. Já comentei
                                       com ela que não me sinto muito confortável com essa
                                       exposição, mas ela refere que as nossas filhas gostam
                                          e que as partilhas lhe trazem imensas parcerias.
                                         Há algo que possa fazer, no âmbito do processo de
                                            regulação das responsabilidades parentais?




                                       PARTILHO, LOGO EXISTO
              C                        aro leitor,                                pessoa nasce. Todos temos, entre outros, direitos




                                                                                  à identidade pessoal, ao bom nome e reputação,
                                       Entramos em 2025 com uma perceção bem dis-
                                                                                  à imagem, à reserva de intimidade da vida priva-
                                       tinta de há vinte e cinco anos. Na entrada do novo
                                                                                  da e familiar e à dignidade pessoal.
                                       milénio, os antigos acreditavam que o mundo iria
                                       acabar. Hoje, o nosso mundo apenas parece ter-
                                                                                  A exposição de uma criança, seja a fazer uma bir-
                                       minar quando há quebra de eletricidade ou nos
                                                                                  ra ou meramente a brincar ou a sorrir para uma
                                       deparamos com quaisquer problemas relativos à
                                                                                  com alguns desses direitos que ela adquire mal
                                       Internet.
                                                                                  nasce. A nossa lei não permite, inclusive, que a
                                       Se, por um lado, estarmos todos conectados   fotografia, ainda que feita pelos pais, pode colidir
                                       numa rede virtual permite que nos sejam abertas   exposição da  nossa imagem  prejudique  a nossa
                                       portas que, de outro modo, não conceberíamos   honra,  reputação  ou  a  nossa  dignidade,  o  que,
                                       como possíveis, por outro, com uma mera parti-  muitas  vezes,  pode  acontecer  quando  os  pais
                                       lha estamos a correr as cortinas das nossas casas   partilham determinadas vivências dos filhos me-
                                       para todos quantos queiram ver. No entanto, en-  nores.
                                       quanto adultos, correr as cortinas é uma escolha.   Além disso, é aos pais que cabe o dever de as-
                                       E quando, ao fazermos isso, mostramos as nossas   segurar  a  segurança  dos  filhos.  Assim,  mesmo
                                       crianças através das nossas janelas?       quando as crianças parecem gostar das partilhas
                                                                                  feitas pelos pais, há que ter em atenção o facto
                                       Costuma agora dizer-se que se o momento não   de que  elas não  têm a mesma  maturidade  nem
                                       for partilhado nas redes sociais, não existe. Com   a mesma literacia digital do que um adulto para
                                       isso, assistimos diariamente a inúmeros vídeos e   avaliar o que essa partilha efetivamente significa
                                       fotografias de  crianças, maioritariamente parti-  ou os perigos que pode acarretar. Note-se que
                                       lhados pelos próprios pais, e divertimo-nos com   metade das imagens de crianças que circulam
                                       as peripécias próprias das idades. Vemos até si-  em sites de conteúdo exclusivo para adultos ad-
                                       tuações como as que o leitor partilha, de crianças   vêm  de  partilhas  feitas  pelos  pais,  muitas  delas
                                       a fazer birras ou a chorar e, muitas vezes, rimo-  aparentemente inocentes. Outras, são até mani-
                                       -nos delas pela sua inocência. Mas paremos ago-  puladas através de Inteligência Artificial.
               Dra. Filipa Menezes     ra para refletir: e se fosse um adulto na mesma
               ADVOGADA                situação? E se partilhássemos um vídeo de um   Por isso, nos tempos que correm, a partilha da
                                       adulto, num momento igualmente vulnerável?   imagem dos menores nas redes sociais deve ser
                                       Continuaríamos a achar piada ou consideraría-  um tema a tratar entre os progenitores na regu-
                                       mos que se estaria a exceder determinado limite,   lação do exercício das responsabilidades paren-
                                       nomeadamente o seu direito à reserva da vida   tais. Os progenitores, a par com os profissionais
                                       privada?                                   do direito, devem ponderar os prós e os contras
                                                                                  da exposição dos menores nas redes sociais, ava-
                                       É uma ponderação desse género que dá palco ao   liando o que essa partilha, ou a falta dela, contri-
                                       debate acerca da exposição das crianças nas re-  bui para o superior interesse das crianças.
                                       des sociais. O nosso ordenamento jurídico é cla-
                                       ro quanto aos direitos de personalidade jurídica,
                                       que se adquire no momento exato em que uma


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